PASSE DE LETRA - Uma opinião de Miguel Pedro
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Albert Camus, filósofo e escritor que ganhou o Nobel da Literatura em 1957, foi sempre um fervoroso adepto do futebol.
A história falará do embate entre Portugal e Uruguai não pela ciência do jogo, mas por causa do tamanho do cabelo do Ronaldo
Desde jovem, onde jogava nas ruas de Argel, na posição de guarda-redes (pois era a posição que menos desgastava a sola das botas, vistoriadas todas as noites pela sua avó, que o proibia de jogar) tendo, mais tarde, jogado no Racing de Argel, até se mudar para Paris, onde adotou o Racing de Paris como o seu clube favorito.
Num curioso vídeo disponível no Youtube, podemos ver Camus a dar a sua primeira entrevista à televisão francesa, após receber o galardão da academia sueca, num estádio de futebol, a assistir a um jogo do seu Racing. Camus justificou a sua escolha do Racing de Paris com a circunstância de ter o mesmo equipamento do seu Racing argelino, e de terem uma característica em comum: muitas vezes perdiam jogos que "cientificamente" deveriam ter ganho.
A ironia de Camus prende-se com o facto de, para o escritor, o futebol ter mais a ver com o teatro e a poesia do que com a ciência. Este caráter aleatório e irracional do futebol, que Camus afirmou na frase que, enquanto guarda-redes, "a bola nunca vem para nós na direção em que nós estamos à espera que ela venha", é que atribui ao jogo todo a sua beleza humana e nos ensina sobre a nossa natureza, tal como acontece numa peça de teatro ou num poema.
Vem esta introdução a propósito de, antes do jogo entre Portugal e o Uruguai, eu ter assistido, na rádio, primeiro, e na televisão, depois, a uma série de intervenções, na antevisão do jogo, por parte de comentadores, especialistas, ex-jogadores, etc, profundos conhecedores de futebol, que, invocando argumentos retirados da estatística, da estratégia, da física mecânica, da ciência cognitiva, da fisiologia, da psicologia emocional, e de outros ramos do saber, para, quase num coro unânime, criticarem as opções iniciais de Fernando Santos. Vaticinavam um desastre.
As razões pareciam pertinentes e bem fundamentadas nas várias ciências. Mas no decurso do jogo, tal como no desenrolar de uma peça de teatro, as nossas atenções dispensaram todo o conhecimento científico produzido e Fernando Santos, que, para mim, assume mais, neste Mundial, o papel de um encenador ou coreógrafo do que de um cientista, afinal tinha escolhido os atores certos. E a história falará deste jogo não pela ciência do jogo, mas por causa do tamanho do cabelo do Ronaldo, pois se estivesse mais comprido o tal golo seria dele.