FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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Não tenho memória dum Benfica-Porto tão desigual como o de sexta-feira santa, tendo em conta o percurso do Benfica dentro e fora do país, e o percurso do Porto, que tem primado esta época por ser forte com os fortes e vacilante com os fracos.
Estes desafios explicam que o que está em jogo é um reajuste de contas passadas, mais do que um simples jogo de campeonato. É a imprevisibilidade que lhe confere dramatismo, mas tudo o que um adepto deseja, quando o seu clube entra em campo, é que a vitória seja previsível e diminua a incerteza.
Há adeptos de muita fé, de pouca fé e assim-assim. Estes oscilam em função da consistência da equipa e quando há dois ou três jogadores de pé quente e cabelo levantado. Não tem sido o caso, como prova a via-sacra dos últimos quatro jogos em casa para o campeonato (Rio Ave, Vizela, Gil Vicente, Portimonense). O Porto tem andado preso, sem ideias, sem esperteza, clarividência, vivendo do querer e do esforço, que raramente são suficientes. A excepção foi o jogo contra o Inter de Milão, em que só falhou no golo, mas este "só" faz toda a diferença, pois significou a morte do artista.
Em períodos de ver para crer, os adeptos de pouca fé usam o agoiro como talismã porque, na sua Bíblia privativa, o optimismo chama a derrota. Este esquema mental, que sobrevive em adeptos ainda com memória do passado, quando a tal travessia da ponte era o começo da derrota, é uma defesa contra a frustração. Ou seja, o pessimismo funciona como amortecedor em caso de derrota e como ganho duplo em caso de vitória.
Eu prefiro baixar as expectativas dum jogo difícil, daí que perder contra o Gil Vicente seja mais duro do que perder contra um líder moralizado, e um provável justo vencedor do título.
Por isso foi uma surpresa (secretamente esperada) ver o Porto pegar no expediente desde o primeiro minuto e reduzir o Benfica a uma incapacidade inexplicável. O cariz do jogo não se alterou nem com o auto golo azarado de Diogo Costa, sofrido na primeira vez que o Benfica foi à baliza adversária. O Porto reagiu e encurralou o Benfica num labirinto táctico a que nem a motivação extra de selar ali o campeonato fez encontrar a saída.
E podia ter sido pior se a fita métrica do VAR não estivesse calibrada em modo lupa no off-side de Galeno, ou se tivesse visto a sola dentada de Otamendi na perna de Zaidu, que seria penálti e expulsão. Ironicamente, foi o mesmo que, como árbitro de campo, expulsou Luis Diaz em Braga por um pontapé num defesa na sequência dum remate à baliza. Este lance só se tornou visível mais tarde porque a realização o escamoteou ao subtrair-lhe relevo pela não repetição. É o que acontece quando o sistema permite que um clube duma liga profissional transmita os jogos em casa no seu canal privado, o que é único no mundo.
Mas o Benfica faz isto porque pode. Só não pôde em campo porque sentiu na face o bafo da sua Nemesis, mesmo fragilizada por um rosário de lesões e um défice de brilhantismo, que, desta vez, por uma questão de respeito, disse presente.