FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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Parece que há um ramo da economia chamado "economia da ansiedade", algo que, segundo os estudiosos, vale 48 mil milhões de dólares em fórmulas para vencer na vida, incluindo os dois requisitos essenciais: dominar a ansiedade e ter confiança.
As receitas misturam crenças místicas, mantras, psicologia positiva, seminários de auto-ajuda, talks, coaching, gestão insegurança, medo de ser pobre, feio, inadaptado, aselha.
A prescrevê-las, há gurus e influencers como Cristina Ferreira ou Bruno Souza, o ex-guarda-redes do Flamengo que se tornou coach mental depois de sair da cadeia por assassinar a namorada. A experiência da sua regeneração conferiu-lhe um MBA que o habilita a pregar nesta freguesia, com muita procura no desporto. A maioria desiste ao confrontar-se com os seus limites, mas quem os supera descobre que, mais difícil do que atingir o topo, é aguentar-se lá - pelo sacrifício diário, pela sombra da depressão. Foi o caso da ginasta Simone Biles, que deixou as Olimpíadas de Tóquio para proteger a saúde mental.
Uma vez perguntei a um craque se dormia bem antes dos grandes jogos e ele disse que sim, mas havia quem simulasse lesões para não jogar. Bellingham, a jovem estrela inglesa do Dortmund, pediu escusa do jogo decisivo em casa, com o Mainz, na última jornada da Liga alemã. Bastava ganhar, mas o empate entregou o décimo primeiro título seguido ao Bayern.
Mertesacker, antigo internacional germânico e ex-capitão do Arsenal, chocou o mundo da bola ao confessar que, a partir dum certo ponto da carreira, dava graças por ficar no banco, e que só foi verdadeiramente feliz quando deixou de competir. Também a pressão que André Gomes sentiu no Barcelona, depois de sair do Benfica, levou-o ao Everton e depois ao Lille.
A obrigação de vencer em tudo lança cada vez mais gente para os gabinetes de psiquiatria e para as panaceias alternativas. Talvez prevendo o presente, Samuel Beckett, prémio Nobel da literatura de 1969, acrescentou uma dimensão libertadora ao conceito de falhanço - falhar melhor, aperfeiçoar a queda. O estrelato é um buraco de agulha onde só passa quem dorme bem e falha melhor, daí a achega de Beckett ser libertadora e poética.
O êxito é uma taça com veneno se o bicho da ansiedade comer a alma, e pode ser pior do que ganhar o salário mínimo em tarefas sem prestígio social e martelado por slogans publicitários que criam novas lacunas e complexos inferiores.
O golo de Éder em Paris inscreveu-o nos anais do futebol mas não o manteve no topo. O facto de se esperar pouco dele no prolongamento da nossa alegria dotou-o da irresponsável liberdade que às vezes guia um remate. Seis anos depois, o golo ainda causa danos colaterais: a coach mental que o orientava acusa-o de ingratidão, talvez por sentir que parte do golo é seu.
O pós-glória exige desmame sob pena de criar um vazio, às vezes em quem engraxou a bota que impeliu a bola. Como virar a página dum livro que chega ao fim? Ora, a parte boa do falhanço é virar a página e tentar de novo, falhando melhor.