FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Não houve epopeia nas arábias nem embaraço, como temi há duas crónicas atrás. Não se borrou a pintura como uruguaios na derrota nem como argentinos na vitória, que jogam hoje a final que pode pôr Messi à frente de Ronaldo no ranking das estrelas. Ronaldo deixou o Mundial sem brilho nem elevação, tal como deixou o United.
Este Ronaldo seria censurado pelo anterior, exigente consigo e com os outros. A entrevista dada ao jornalista mais desacreditado de Inglaterra prenunciou o pior
Podia ter admitido a má forma para evitar o psicodrama à sua volta, mas preferiu atiçá-lo. Uma baixa de forma não seria nada demais, tal como 37 anos não são sinónimo do fim, bastou ver em campo Modric e Messi, que se prepararam bem para o torneio. Ao contrário, Ronaldo apresentou-se sem impulsão, sem velocidade, sem nada do que o notabilizou. Para a sua imagem, teria sido melhor admitir o mau momento do que exibir uma caricatura de si mesmo, algo que Jorge Mendes talvez lhe tenha explicado, mas ele só deve ouvir a família e Piers Morgan, que lhe dizem tudo o que quer ouvir.
Este Ronaldo seria censurado pelo anterior, exigente consigo e com os outros, não só pela birras mas por colocar os seus interesses à frente da selecção. A entrevista dada em cima da concentração ao jornalista mais desacreditado de Inglaterra prenunciou o pior. Se fossemos escandinavos, não lhe perdoávamos uma multa de trânsito, assim dividimo-nos entre os agradecidos incondicionais e os fariseus que o apupam. Um pivô da SIC disse mesmo que valia mais Ronaldo a 30 por cento do que André Silva, o segundo melhor marcador do grupo, a cem por cento. A histeria chegou a isto.
Fernando Santos foi corajoso ao tirá-lo, mas a equipa vacilou na hora H, do guarda-redes aos avançados. A sorte virou costas, a bola tinha um íman que tolhia o individual e o colectivo. Faltou um Griezmann capaz de colar as peças, mas a melhor geração de sempre não produziu nenhum. Em quatro dias, fomos do killer instinct ao bloqueio, da superioridade à dúvida, e Marrocos soube usar e agitar o frasco de gasolina do não favoritismo, que já foi nosso.
Se indagarmos o que se escreveu sobre as saídas do Brasil, Alemanha, Espanha encontramos mil culpas, zangas, mágoas, nenhuma como as nossas, eivadas dum sebastianismo agravado pelo fardo de Ronaldo, o melhor do mundo, que assistirá hoje ao show do outro melhor. Ainda assim, agradeço-lhe a dimensão hollywoodesca, inútil em campo, e a dívida que nenhuma birra amortiza nem nenhum mau exemplo mancha, como quando atirou ao chão a braçadeira de capitão, antecipando o presente.
E agradeço a Fernando Santos as taças. Quem o metralhou é quem acusa agora a federação de o despedir com um comunicado impessoal. São os mesmos que espiolham o Instagram dos jogadores para ver quem lhe agradeceu. Venha quem vier, terá de levar à vitória a melhor geração de sempre, com ou sem Ronaldo, mas com recital.
Por fim, agradeço aos que contribuíram para que a fasquia esteja tão alta, como Éder, descartado depois do golo em Paris, que nunca se queixou de ingratidão e nem uma frisa lhe reservaram no Qatar. E agradeço a saída digna, que fica bem na lapela mas é de consolação fraca.