PLANETA DO FUTEBOL - Uma opinião de Luís Freitas Lobo
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1 - Os dois nomes, histórias e comportamentos, dividem hoje o mundo emocional de Manchester: Cristiano Ronaldo e Christian Eriksen. Ambos procuram reinventar-se para a parte final da carreira. Existe, porém, um abismo de sensibilidade entre os dois.
Como vejo e sinto o perturbante caso Ronaldo em Manchester
A vida e o futebol caminham lado a lado mais perto do que se julga ao longo de todo o percurso dum futebolista. Este regresso à competição de Eriksen é um renascimento que emociona. A memória daquela tarde de coração suspenso, a vida por um fio, no relvado do Parken Stadium de Copenhaga, com toda a equipa dinamarquesa a rodeá-lo, protegendo dos olhares que devoram, estará para sempre na nossa mente quando o vemos jogar. Parecia impossível isso voltar a acontecer.
Após o hesitante regresso no Brentford, a sua contratação pelo Manchester United, onde o novo treinador Ten Hag quer fazer dele uma peça-chave da arquitetura da equipa, dá, por si só, vontade de ir às bancadas de Old Traford. Só para o ver e arrepiar-me com ele, sentindo como o futebol pode nesta dimensão estar junto com a incomensurabilidade da vida. Juntos, futebol e vida, cada vez que ele tocar na bola.
2 - Ao mesmo tempo, por entre fotos de férias com águas cristalinas e carros faraónicos de luxo, Ronaldo ainda não compareceu a um treino no clube que o fez jogador de nível estratosférico no inicio da carreira. Tem contrato, mas tem mais vontade de jogar noutro clube. Com outras condições para lutar por títulos e jogar a Champions, que nunca falhou. Nem PSG, Bayern Munique, Real Madrid (e outros clubes de nível Champions) conseguem, no entanto, rever nele o mesmo jogador. Futebol e vida, outra vez.
O impacto e marca que a sua carreira teve na história do futebol não encaixam num processo de exibição egocêntrica destas. O treinador Ten Hag tem feito de tudo para não tornar a questão irreversível. Fala de Ronaldo como jogador para todos os jogos no Manchester United (quando a maioria questiona e duvida disso) e de como, para ele, será decisivo na equipa, pois basta dizer que "garante-nos golos!".
3 - Sei que cada caso tem os seus quadradinhos mas é impossível separar o que cada um destes jogadores emocionalmente transmite hoje ao adepto do Manchester United que vive a sua equipa com a alma. Se fosse um deles (ou não sendo, mas sentindo de fora), a camisola que iria comprar a correr era a de Eriksen e pura e simplesmente dispensaria Ronaldo, seus carros de luxo, ego e atitude. O Manchester United, a enormidade da sua história, não precisa disto, nem o deveria admitir. Ninguém, nem Charlton, Best ou Law (com estátuas à porta de Old Trafford), Best, Robson, Cantona, Beckham, monstros idolatrados dos red devils, alguma vez ousaram tocar neste património lendário. O ego de Ronaldo, mesmo como maior goleador de sempre, não poderia nunca ousar fazê-lo. Devia ser o próprio Manchester United, neste momento, sem uma explicação clara do jogador, a fechar definitivamente a porta a este capítulo. E seguir como clube, para a eternidade.
4 - Ele esteve quase a ir-se... quanto perto esteve? Não sei, conseguimos que ele voltasse após a desfribilhação", disse então Morten Boesen, médico da seleção dinamarquesa, buscando explicação terrena para a reversão da paragem cardíaca sofrida por Eriksen em pleno jogo, faz agora um ano. Naquela altura, ele voltar ao futebol parecia utópico. Por isso, vê-lo agora, literalmente renascido com 30 anos na relva de Old Trafford é a imagem perfeita para ilustrar o "teatro os sonhos". O futebol não pode ser, nem tornar-se, numa máquina fria de empresários, egos e dinheiro. Nunca foram esses fatores que o fizeram grande, mas podem ser eles que o destruam nas suas raízes emocionais mais profundas. O caso Ronaldo tem, por isso, um impacto superior ao dum mero jogador em debate com o clube por querer sair e jogar noutro lado (não se compara à sua rutura com o Real Madrid). O que está aqui em causa é o que faz o coração do futebol bater, nas bancadas e nos adeptos, do clube e do jogo. Esse coração está hoje unicamente dentro de Eriksen.
Como era Seeler, o fulminante baixote n.º 9 alemão que partiu esta semana?
É curioso notar como mesmo sendo uma terra de gigantes, histórico império do futebol-força, a Alemanha tenha como nomes maiores de pontas-de-lança dois jogadores mais baixotes, não passando do 1,70 m., e até morfologicamente arredondados (ok, gorditos). Eram, claro, Gerd Muller e outro, de geração anterior mas ambos chegaram a jogar juntos, Uwe Seeler, o exterminador de Hamburgo (onde sempre jogou, exceto em três jogos no Cork City em fim de carreira), que faleceu esta semana. Não o vi, claro, jogar ao vivo, mas vendo em vídeo esses jogos antigos foi impossível não ficar seduzido pelo seu estilo, caráter solto e alegre, raça e golos que pareciam impossíveis.
Muitos não o conseguiam imaginar sem ter ao lado uma caneca de cerveja e uma suculenta "bratwurst", as opulentas salsichas alemães. Não era um génio, mas dentro da área o seu futebol adquiria contornos demoníacos com um remate fulminante, astuto nas desmarcações e drible. Quando pegava na bola, os adeptos, eufóricos, gritavam "Uwe, Uwe", já prevendo o aproximar do balançar das redes. Estreou-se na "Mannshaft" com apenas 18
anos, em 1954. Retirou-se após o Mundial 70. Até ao fim da vida, conservou o mesmo olhar travesso de menino pleno de esperança: as faces rosadas, que, quando jogador, quase fazia parecer que jogava com um cachecol amarrado ao pescoço, tal a cara vermelha com que ficava com o esforço.
Quem me fez (faz) sonhar
Klaus Fischer
Escrevendo sobre Muller e Seeler, recordei outro n.º 9 germânico, longe do nível destes dois, mas que sabia também partir corações aos defesas e em 82, numa meia-final contra o belo onze da França, fez, de bicicleta, um golo quebra-sonhos gaulês, já no prolongamento: Fischer! Também ficava com quilos a mais e era peitudo (1,78m), mas a movimentação e oportunismo fizeram-no fera do golo. Jogou nos anos 70/80, símbolo do Schalke, e depois no Colónia, acabando no Bochum em 88. Na seleção fez 32 golos em 45 jogos.