VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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Têm sido notícia os incidentes que sinalizam problemas entre Jorge Jesus e alguns dos seus jogadores. Pelo que se tem visto, ele tem um excesso de intervenção e uma tendência para a repreensão ríspida que é mais própria da figura do treinador como pai autoritário, frequentemente tirano, que já está fora de circulação há muito tempo.
Porém, é outro o seu pecado. Jesus vê-se como grande criador, condição que está sempre a repisar («uns poucos criam, os outros todos copiam», diz) e vê os seus jogadores como as personagens que dão corpo à sua criação. Nunca o ouvi elogiar o talento de um jogador seu («Odysseas salvou a equipa?», perguntam-lhe, e ele responde: «Não, fez a sua obrigação»).
Aliás, os jogadores não são repreendidos por estarem a jogar mal, mas por não estarem a dançar a sua dança, seguindo a coreografia. Tanto trabalho que ele tem a inventar e, depois, os jogadores querem ser livres e espontâneos! Há quem pense, talvez com razão, que estes excessos dos treinadores sedentos de mais participação no jogo inibem a plena expressão dos jogadores. No extremo, digo eu, pode até transformar génios em trabalhadores indiferenciados.
Mas Jesus cria o quê? Do ponto de vista da invenção táctica, nada. Houve períodos na história do futebol em que ele solicitou a criatividade dos treinadores. Anos e anos de especulação táctica culminaram no futebol total, onde o factor mais importante passou a ser a dinâmica, deslocando-se a influência dos treinadores para outros aspectos, como a gestão e a psicologia de grupo, a metodologia do treino, etc.
Embora existam equipas de treinador-autor, com uma linguagem própria, como o Barça de Guardiola, os jogadores são os únicos criadores da matéria e da substância do jogo. E os melhores treinadores são os que estimulam essa criatividade, não os que a limitam para que no jogo também caiba a sua criação. Aliás, o futebol é talvez a única actividade humana em que inventar é frequentemente indesejável. Talvez por já estar, como disse, tudo inventado, o mais importante passou a ser a competência e o bom senso. «Pôs-se a inventar» é um lamento recorrente dos adeptos, quando o treinador faz mudanças (invenções, pois) desnecessárias.
Quanto à discórdia benfiquista, é certo que, a partir daqui, só existirá no segredo da casa finalmente trancada, mas ficou, desde já, claro que o cristal amoroso Benfica-Jesus deixou de brilhar. Se a união durar até ao fim da época já é uma grande proeza. Quem diria, não é? Não vai muito longe o espampanante circo mediático que foi a sua chegada do Brasil, digno da aparição de um Messias. E já passou a Dispensável.
O futebol, que é o único demiurgo a sério em funções, também não perdoa, ou deixaria de ser o que é. E lá vai Jesus inventar (e também arrasar) para outro lado, talvez para o Brasil. Este trânsito incessante entre dois polos opostos (glória e fracasso, céu e inferno) é a vida normal de todos os treinadores, até de um treinador como ele, que se vê a si próprio sentado numa nuvem, acima dos comuns mortais.