VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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O futebol está a ser varrido por um vendaval de ataques judiciais, o que não admira, pois é hoje o território mais fértil da criminalidade financeira, e não só. Diz quem sabe que 25% dos seus fluxos financeiros são de origem criminosa. E embora todos estes processos e todas estas aparatosas buscas judiciais apenas se amontoem, sem termo ou finalidade, dão-nos a ler algumas páginas desse livro negro que, antes, só podíamos imaginar. E as pessoas vão fazendo os seus próprios julgamentos, já que não há outros.
Em causa está todo um manancial de truques em que o dinheiro circula tanto que se torna volátil, inexistente, embora, na maior parte dos casos, apenas regresse à nascente para morrer, como os salmões. O MP explica-nos isso, e muito mais, nas acusações destes processos, só falta fazer uns desenhos para melhor entendimento de alguns incrédulos, cativos do amor clubista, que lhes tolda a consciência. E, claro, falta provar as acusações, o que é sempre uma missão impossível, pois a investigação depara-se com hábeis e sofisticadas construções financeiras, erguidas pelos mais refinados craques na matéria.
O que é isto? É a indústria, o produto, como designam o futebol os muitos comentadores que se debruçam, a toda a hora, nos nossos televisores. Não se cansam de dizer que é preciso defender essa indústria, desenvolver o produto (eu sei, parecem estagiários do Jornal de Negócios, não comentadores de futebol). Não é preciso, pessoal! A indústria nunca cresceu tanto, e é esse o mal.
A consultora Deloitte acaba de anunciar que, pela primeira vez, o mercado do futebol na Europa atingiu a marca de 25 bilhões de euros, uma verba superior ao PIB de 99 países (por exemplo: Camarões, Camboja, Moçambique, Estônia, Paraguai). Salta à vista que atingimos uma exasperação capitalista insuportável, onde tudo é números e negócio, corrupção, ilegalidade, ganância, malícia, desamor, enfim. Na verdade, é ao contrário do que dizem os gurus televisivos: o futebol é que tem de se defender deste excesso de indústria e de negócio, que o conspurca e desvirtua.
Ora, tudo isso nos remete para a necessidade de uma recuperação dos valores (simbólicos, religiosos, afectivos) que o maldito negócio soterrou, talvez não para sempre. E vá lá que já se podem detectar, aqui e ali, sinais dessa vontade. Um deles acaba de chegar de Madrid: o templo do Real Madrid (a palavra é essa, templo, estádios são locais de culto), que foi completamente remodelado, não cederá o seu nome a nenhum patrocinador, apesar das muitas propostas chegadas ao clube, que até está em plena crise financeira. Qual «Bernabéu Microsoft» ou «Emirates Arena»! O Santiago Bernabéu continuará a ser o Santiago Bernabéu. Nem tudo são afectos tristes, portanto, e este é tão alegre que canta: alguém abandonou o rebanho acéfalo e parou de caminhar na direcção do precipício. Parece pouco (uma estrela solitária num horizonte de negrume), mas talvez seja o primeiro gesto de uma nova atitude, a abertura de um caminho de regeneração e limpeza.
Feliz Ano Novo.