PLANETA DO FUTEBOL - Opinião de Luís Freitas Lobo
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1 - Toronto, Canadá, temperatura negativa (menos três graus) e neve pelo relvado.
No banco, um jovem treinador inglês. John Herdman, que antes só treinara equipas femininas (da seleção da Nova Zelândia à do Canadá) mas que em 2018 aceitara o desafio que orientar um mundo de homens, a seleção (masculina) do Canadá.
Nessa altura, nem imaginava o feito que estaria para atingir: 36 anos depois, o Canadá apurou-se para o Mundial (ficando à frente de EUA e México). Muita coisa mudou desde o remoto ano de 1986. A equipa que hoje Herdman montou já sabe muito mais sobre o jogo e, olhando o seu onze base, vemos jogadores que alinham na Europa.
O futebol canadiano soube reunir este grupo, muitos emigrantes de segunda e terceira geração, e dessa forma criar uma identidade, que junta desde um guarda-redes de raízes sérvias, Milan Borjan, até uma dupla atacante de aroma e calor caribenho: Cyle Larin, 26 anos, (origens jamaicanas), um n.º 9 de desmarcação curta entre os centrais, oportuno a finalizar, e, sobretudo, a velocidade de um para um. finta, passe e remate de Jonathan David, 22 anos, a estrela da equipa, serpente com origens no Haiti (mas já nascido nos EUA), a jogar no Lille, após emergir no futebol belga.
2 - Num sistema que alterna entre o 4x4x2 e o 4x2x3x1, ainda entra, aos 39 anos, a maior figura do futebol canadiano que atravessou gerações, o gigante perna-longa Hutchinson (ainda no Besiktas) mas já sem ser titulares, entra por vezes para central, porque no seu antigo lugar de pivô médio-centro surge Eustáquio (origens portuguesas) e Jonathan Osório (origens colombianas). Ambos sabem organizar o jogo desde trás, podendo alinhar em duplo-pivô ou como interiores, adiantando-se, nesse caso, Osório quase para "10".
Numa defesa sólida (onde entra Steven Vitória), emerge a velocidade do "pequena locomotiva" da faixa, Alphonso Davies (origens liberiana, nascido no Gana, cresceu no Canadá), que já voa em Munique, mas que nestes jogos decisivos, sem ele, mostrou outro lateral-esquerdo de pujança e chegada à frente, Adekugbe (origens nigerianas, nasceu em Inglaterra e joga no Hataysport turco), decisivo na vitória sobre a Jamaica (4-0) que fez saltar o gelo por entre multidão de gorros, luvas e cachecóis.
3 - Dakar, Senegal, 23 graus, ao pôr-do-sol, relvado seco e bancadas cheias donde saíram sem parar lasers que hipnotizaram os jogadores egípcios durante o jogo todo. Impressionante, ao ponto de na hora de marcar um dos penáltis decisivos a cara de Salah ter ficado toda verde.
Antes, como jogara no Cairo, uma seleção senegalesa com cultura tática, bem orientada pelo carismático Aliou Cissé (treinador que é uma espécie de chefe de tribo do futebol do Senegal). Num 4x3x3 que sabe gerir os diferentes momentos do jogo, controlou bem o contra-ataque dos "faraós" e procurou um jogo posicional apoiado (o trio de médios Mendy-Kouyaté-Gueye, sempre bem colocado em antecipação nos espaços) para lançar no "timing" certo o ataque, onde Sarr e Mané são os geradores de perigo a partir das faixas.
A posição nº 9 é a mais questionável. Após a primeira opção Boudalaye Dia (do Villarreal) pouco móvel a sair das marcações, surgiu Dieédhiou (Alanyaspor) na segunda mão. Moveu-se melhor mas penso que foi com Dieng (do Marselha) que entrou na ultima meia-hora (embora com adversários mais desgastados) que encontrou o avançado-centro que combina melhor com o tipo de alas com visão de baliza e golo que tem, num jogo em que Mané não dispõe do mesmo protagonismo (joga mais condicionado à esquerda) que tem em Liverpool.
4 - Vejo este Senegal como a seleção mais forte do atual futebol africano. Sem perder a técnica inata mais natural na África subsariana, soube acrescentar um traço de tática, capaz de tornar jogo por vezes mais lento e calculista, oriundo da influência euro-francófona, mais típica da África do norte. O Senegal é hoje como um cruzamento destes dois estilos que historicamente cruzaram e/ou separaram o futebol africano.
MODELOS
Que médio e que avançado de Marrocos para fixarmos e seguirmos?
Casablanca, Marrocos, sem tapete voador a seleção marroquina goleou (4-1) o Congo. Num esquema de três centrais com Saiss (do Wolverhampton) no meio, controlou todo o jogo desde o inicio num sistema (3x5x2) que solta os laterais como alas a atacar, território onde Hakimi mete uma velocidade superior na a faixa direita.
No meio-campo, um jogador para fixar e seguir: Azzedine Ounahi, 21 anos, um nº 8 que joga e faz jogar, de passe, tabela e surgir na frente com remate para golo. Joga no Angers e tem tudo para marcar a próxima geração como médios de referência na relação África-Europa.
No ataque, em vez de apostar no nº 9 esguio El-Nesry, lançou um dupla onde está o avançado que, percorrendo todos campeonatos, mais me tem entusiasmado esta época: Tarik Tissoudali. Aos 29 anos, joga o Gent (onde já fez 21 golos) após carreira discreta (Venlo, De Graafschap, Beerschot). É um enigma como só agora atinge este nível exibicional tão alto.
É um avançado que cruza posições (e as características que, tradicionalmente, cada uma delas tem) como o futebol moderno exige. Tem traços mais de extremo, rápido a desmarcar-se nos espaços vazios ou a ir para cima dos defesas, mas a tendência é surgir por dentro (como faz no Gent) ou, então, ser colocado numa zona mais central em dupla de ataque, como sucedeu na seleção, combinando com El Kaabi. Merecia saltar ainda para um clube maior.
Randy Samuel
Quando penso no Canadá de 86, há um jogador que me vem logo à memória: Randy Samuel. Nos guias de apresentação era o jogador mais destacado e, depois, nos jogos, mostrou a razão para isso. Era um defesa forte que se impunha no corte. Nascido em Trinidad e Tobago, nessa altura era jogador do PSV mas foi no Fortuna Sittard que mais brilhou. Agora, 36 anos depois, Samuel (que findou a careira em 2001, no Montreal Impact) irá ver a sua seleção (onde foi 82 vezes internacional) voltar a um Mundial. Lenda do Canadá!