FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Há um mês, a propósito da lesão muscular que St. Juste sofreu em Turim, Rúben Amorim causou celeuma ao dizer que era por isso ele que jogava cá e não noutro lugar. O desabafo, após o Sporting perder um jogo em que foi melhor, podia ter sido feito por Sérgio Conceição no rescaldo da eliminatória com o Inter de Milão: tivesse Taremi marcado duas das quatro chances flagrantes e estaria noutro lugar.
St. Juste é um jogador fino, como Draxler, ambos acolhidos numa liga-santuário por causa das mazelas acumuladas no percurso, uma liga que também acolhe jogadores em fim de carreira mas ainda úteis, como Pepe, além de flops em regime de segunda oportunidade, e promessas fazendo a aprendizagem da eficácia e da constância enquanto aguardam uma chamada do mercado. Partir ou ficar é sempre o mercado a funcionar, é caçar com Galeno em vez de Luis Díaz e esperar que Galeno aprenda a ser Luis Díaz.
O fôlego financeiro dos emblemas portugueses continua a divergir do fôlego dos seus pares europeus, mas agora com contornos mais cruéis, já que qualquer Wolverhampton ou Fulham abre a bolsa e leva quem quer. A nossa função é prover as ligas ricas através da formação, da reciclagem, da descoberta de talento em África e América do Sul, com polimento incluído.
Em entrevista recente à ESPN, Deco disse, por outras palavras, que o Porto lhe podou os vícios de praia (Fernando Santos, maldisposto pela manhã, expulsou-o de vários treinos). A marca do jogador brasileiro ainda é o futebol de praia, letal no tempo do Garrincha e Pelé, mas hoje inofensivo. A oficina lusa fornece serviços de poda sem anular a criatividade, o que é difícil, porque criatividade e brincadeira andam de mão dada.
Talvez Amorim aludisse também à maior irrelevância dos treinadores na escolha de planteis, cada vez mais do foro de directores desportivos e financeiros, em conjunto com os seus "partners" naturais, os empresários. Daí as SAD com domicílio flutuante transitando de Vila Franca de Xira para Vila das Aves, ou de Lisboa para a Cova da Piedade, como aconteceu com Vilafranquense e B-SAD. Neste novo mundo empresarial fala-se mais economês do que futebolês e é imperioso ter uma vitrina para expor o portefólio de representados. Jogar em nome duma alma ou duma raiz é secundário, o que importa são os números.
Não se sabe se isto vai acabar numa bolha, ou se o investimento migrará para áreas com maior rentabilidade, o eventual cultivo de microalgas sintéticas para limpar oceanos. O futuro é sempre uma tômbola. Por agora, continua a alienação de memórias de clubes, brinquedos que donos anónimos desmancham junto à piscina enquanto beberricam champanhe.
Contudo, às vezes o espírito traquina do futebol faz das suas e explica que despejar capital num Chelsea ou num PSG não é garantia de êxito. É preciso orar ao espírito do futebol, e esse habita nos antípodas daquele a que oram os excitados comentadores que auguram a cotação mágica dos mil milhões de euros ao prodígio Haaland - o primeiro unicórnio do futebol.