VISTO DO SOFÁ - Uma opinião de Álvaro Magalhães
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Viva o Belenenses, que foi capaz de recuperar a sua natureza perdida de clube e, após cinco subidas consecutivas (um recorde mundial), em que carregou a cruz de Cristo às costas, chegou à Liga 2 e está agora a um só passo de se transformar em quem já foi. O calvário dos belenenses começou em 2012, quando o clube, em crise financeira profunda, abriu o capital da SAD à empresa Codecity, que ficou com 51,9%. O acordo dava aos sócios a possibilidade de recompra da maioria das ações da SAD, mas a empresa de Rui Pedro Soares rescindiu esse acordo e acendeu a disputa que culminou na separação da SAD e do clube, que se viu forçado a uma refundação ou segundo nascimento, a partir do nada.
Foi há 33 anos que se criou a figura das SAD, uma modernice que iria resolver o anacronismo da irracionalidade e da paixão, mas que se revelaria um anacronismo ainda maior
Há cada vez mais conflitos deste género, o que não admira. O património sentimental dos adeptos e a ideia de empresa e negócio opõem-se, como estirpes de uma radiação incompatível. Leixões, Penafiel, Cova da Piedade, Olhanense, Beira-Mar, União de Leiria, entre outros, viveram ou vivem ainda graves conflitos conjugais. Essa zona de guerra, aliás, não cessa de crescer, talvez na mesma medida em que cresce a consciência de que o futebol só pode ser apropriado por quem o ama, ou seja, pelos seus adeptos, uma convicção que também já está a gerar movimentos sólidos de «Não às SAD» em países de grande tradição futebolística, como a Espanha e a Argentina.
Foi em 1990, há 33 anos, que foi criada a figura das SAD, uma modernice que iria resolver o anacronismo do voluntariado da irracionalidade e da paixão, mas que acabaria por se revelar um anacronismo ainda maior. Os clubes que se converteram em SAD estão quase todos falidos. É verdade que aumentaram as receitas, mas os encargos aumentaram muito mais e a ligação à vida depende da antecipação de receitas televisivas e do endividamento. Em Portugal, as três principais SAD - Benfica, Sporting e Porto - acumulam 600 milhões de euros em dívidas. Rigor e transparência, que eram os dois pilares da ideia de SAD, onde é que eles estão? Se vocês não os vêem, eu também não.
Como o objectivo das SAD era trazer à gestão do futebol a racionalidade inerente a uma ideia do jogo como negócio, pode dizer-se que estamos perante um fracasso tão estrondoso como irreversível. Sim, irreversível. Vejam este caso do Belenenses, que arrastou penosamente a sua cruz durante cinco anos por causa da desastrosa união com uma SAD, mas, se subir à primeira liga, ou mesmo antes disso, para o conseguir, terá de voltar a fazê-lo. Quem o diz é o próprio presidente do clube, que adianta também que não faltam interessados no novo enlace, e alguns são mesmo bons partidos, como milionários americanos e príncipes das arábias.
Compreendemos: é casar, de preferência, com alguém muito rico, ou estiolar, definhar, ficar para trás, morrer. E quem é que quer morrer? Ainda assim, ó belenenses, lá se vai o estóico associativismo, a construção amorosa e paciente desta nova vida. Pior ainda: lá vem outra vez aquela história em que os dois protagonistas casaram (um deles, por obrigação, o outro, por interesse) e viveram infelizes para sempre.