Itália foi a última das grandes ligas a fazê-lo, mas rejeitou os planos de uma Liga dos Campeões exclusiva e fechada aos desempenhos nos vários campeonatos nacionais.
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A rejeição, pela liga italiana, de um modelo elitista da Liga dos Campeões, foi assinada anteontem pela esmagadora maioria dos emblemas transalpinos, à exceção da Juventus e das abstenções do Inter de Milão, AC Milan, Roma e Fiorentina. Talvez se perceba, pelo detalhe da votação, a razão pela qual foi a última das grandes ligas a fazê-lo.
Qual é o adepto que não quer mais e melhores reforços na equipa? E qual o dirigente que rejeita comprar jogadores que o clube não consegue pagar?
É uma posição que poderá ter refreado consideravelmente as intenções da UEFA, apoiadas pela cúpula da ECA (Associação Europeia de Clubes), em fechar a mais importante prova do futebol europeu aos sonhos de qualquer emblema do Velho Continente. Mas, até que ponto a vertigem pelo lucro não prevalecerá sobre o que resta da paixão pelo jogo do pontapé na bola?
Graças à denúncia, ainda em 2018, de que existiam conversações secretas entre clubes de grande dimensão, destes com as cúpulas do dirigismo global (primeiro com a FIFA e depois com a UEFA) e de todos com potenciais investidores, sobretudo com testas-de-ferro de poderosos grupos financeiros, tornou-se possível perceber que o futebol estava a enveredar por caminhos que põem em risco o seu próprio ecossistema.
As primeiras denúncias apareceram via Football Leaks, onde Rui Pinto, atualmente encarcerado em Portugal, teve papel fundamental, e foram desde logo investigadas pelo consórcio europeu de Media e de jornalistas, que comprovaram a existência dessas secretas negociações.
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Os (primeiros) planos da FIFA terão caído pela via institucional, muito à custa da força da UEFA. Reeleito presidente no organismo europeu, em fevereiro deste ano, Alecksander Céferin rejeitou de imediato o objetivo da FIFA, que passava pela remodelação do seu Mundial de Clubes e criar uma Liga das Nações global. Infantino acenava, então, com a distribuição de 25 mil milhões anuais pelos clubes. Ora, os emblemas de maior dimensão, que até estavam alinhados com o projeto da FIFA, acabaram a resgatar a necessidade de compensar os seus enormes investimentos com um modelo competitivo mais rentável e acabaram a fazer reféns na UEFA.
É então que entra em jogo a ECA e o seu presidente Andrea Agnelli. O também dirigente máximo da Juventus e outros dirigentes com vontades economicistas ou objetivos de gestão lucrativa, terão convencido a UEFA das vantagens de um modelo de Champions que a tornasse na mais poderosa marca mundial de desporto, calendarizando-a aos fins de semana e elitizando-a com a permanência dos mais relevantes emblemas, abrindo apenas umas vagas, ano a ano, a meia-dúzia dos outros, dos mais pequenos.
Quando o dinheiro e o povo não se entendem, há que haver intervenção da representatividade governativa de ambos. É para isso que existem os governos corporativos, como a UEFA.
Estava fácil de perceber: os seis a 10 jogos anuais na Champions não geram receitas suficientes para os objetivos económicos de uma Juventus, que não tem rival em Itália (oito títulos seguidos). E outros como o presidente da Juve pensam da mesma forma: Bayern de Munique e Real Madrid aparecem, então, associados a um grupo de pressão que funciona junto da cúpula da UEFA. No entanto, as ligas alemã e espanhola, enquanto entidades coletivas, foram das primeiras a reagir, tal como a inglesa. Tudo isto já durante a presente temporada, com a UEFA a assumir como sua a proposta de uma Champions mais forte, mais rentável, mas também mais inacessível aos pequenos e médios.
Aliás, em Inglaterra, o próprio governo manifestou o seu desagrado com a ideia de uma competição que fizesse mossa à Premier League ou que desencantasse os milhões de adeptos dos emblemas que não os "Big Six": Liverpool, Manchester City, Manchester United, Chelsea, Tottenham e Arsenal. Porém, também estes - quatro dos quais estiveram nas finais das duas provas continentais desta temporada - torceram o nariz à ideia de uma superliga europeia, com promoções e despromoções em circuito fechado e ocupando parte dos fins de semana.
Em Portugal, na ausência de uma posição conjunta dos clubes, o assunto resumiu-se à posição pública e política da Liga, sendo esta pela rejeição do modelo desde que o assunto veio à baila.
Os próximos capítulos, somadas as rejeições das organizações profissionais, passarão pela renegociação dos planos de reformulação dos quadros competitivos da UEFA das provas para clubes a partir de 2024. A European Leagues, que congrega as ligas profissionais europeias, mantém o braço de ferro com a ECA e bateu o pé à UEFA. O que até é estranho, pois, na verdade, são duas associações simbióticas: não há ligas sem clubes e vice-versa.
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O problema disto tudo são os grandes investidores particulares no futebol, sejam eles famílias endinheiradas, fundos de soberania nacional, magnatas do petróleo ou do gás. Todos estes precisam, hoje, muito mais do que os golos marcados pelos jogadores. Precisam de índices de crescimento económico e financeiro que o plano desportivo não lhes garante. Precisam de retornos que suplantam o apego e a paixão do adepto à sua equipa.
O investimento astronómico que está a ser feito no futebol pode desregulá-lo. Esse é o risco. Mas qual é o adepto que não quer mais e melhores reforços na equipa? E qual o dirigente que rejeita comprar jogadores que o clube não consegue pagar? Até existem alguns, mas são uma gigantesca minoria. Estas duas questões não são um problema dos grandes emblemas. São problemas dos pequenos, que são muitos, mas muitos mais.
Pois bem, quando o dinheiro e o povo não se entendem, há que haver intervenção da representatividade governativa de ambos. É para isso que existem os governos corporativos, como a UEFA. A ver se não fica refém de alguma das partes.