O mundo do futebol - organismos, dirigentes e Imprensa - acordou hoje contra a intermitente ameaça da hipotética superliga europeia, competição fechada e proposta a uma elite de 16 emblemas (nenhum português). Depois de uns dias a badalar nos Media, graças a uma fuga de informação (emails trocados entre promotores e clubes convidados), hoje revelam-se os receios face ao poder do dinheiro... que todos querem, melhor ou pior distribuído.
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A vertigem do lucro motiva os faraónicos investimentos no futebol. Tornaram-no mais atraente, fizeram dele um espetáculo fantástico e de paixões com intensidade muitas vezes desmedida. Mas essa vertigem é hoje vista como um cancro por responsáveis da sua própria indústria, das tutelas desportivas e dos próprios governos dos países.
Desde logo, o inglês. Ainda hoje se soube, através de uma notícia assinada pelo editor de Desporto da BBC Sports, Dan Roan, que o Executivo liderado por Theresa May considerou, através de uma fonte oficial, que uma superliga europeia "provocaria danos à cultura do futebol inglês".
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Razão pela qual "se oporá a qualquer superliga" do género da que foi revelada na passada semana pelos media europeus, que noticiaram com base em documentos tornados públicos pelo site Football Leaks, e que davam conta de negociações secretas entre os mais poderosos emblemas do Velho Continente.
Sem conhecermos qualquer posição do Governo português sobre o assunto, ou dos especialistas na Oposição, o primeiro emblema português a pronunciar-se oficialmente foi o Benfica, hoje, através do administrador da SAD Domingos Soares Oliveira: "Percebo o conceito e as ideias básicas dos que são a favor, mas este conceito vai mudar o resto dos clubes que não vão participar e pelos nomes que vimos, os clubes portugueses vão talvez ficar de fora".
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São declarações que surgem depois do efeito "bomba" provocado pelo consórcio media que explorou a fuga de documentos, mas cujos primeiros impactos acabaram por ser, nesta fase, fatais aos promotores do projeto: xeques e cheques das arábias, das ásias e das américas, mais ou menos disfarçados de empresas de investimento de várias nacionalidades da chamada civilização futebolística.
Entretanto, também os putativos 16 clubes (nenhum português) primeiramente enunciados como sendo os que estavam a ser "convidados" para essa superliga desataram a explicar que não há nada de concreto e que foram isso mesmo: apenas convidados para algo a que ainda não tinha anuído.
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A Imprensa europeia também dedilha contra o monstro. Basta olhar a capa de hoje de A Marca (ver em baixo). Ou apreciar o exercício que a BBC Sports fez sobre o modelo dessa competição fechada, indexando métricas com base no ranking uefeiro (aqui).
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Num artigo extenso, a revista Forbes dedica-se a explicar o "armaguedão" que provocaria a criação desta competição fechada, nomeadamente a forma como seriam excluídos do Mundial de futebol e da Champions os melhores jogadores do planeta: "Se uma liga fora-da-lei se formasse, então o futebol mundial - federações nacionais, UEFA e FIFA - poderia banir os jogadores da superliga das suas competições. E nenhuma equipa sob a tutela dessas organizações poderia jogar contra as equipas da superliga, nem sequer em amigáveis".
Pois bem, fica a questão: seria isso mesmo muito mau para os investidores dos 16 emblemas convidados? Talvez não, a curto e médio prazo. Mas seria um desastre para o futebol tal como o conhecemos, até mesmo para os adeptos dos mais poderosos, conforme vários argumentos com visão a mais longo prazo.
Ora, é exatamente essa a visão da European Leagues (EL), a associação das ligas profissionais europeias, que integra a portuguesa, e que hoje sai a terreiro em defesa dos atuais modelos organizativos no ecossistema futebolístico continental, a estrutura piramidal, onde "os mecanismos de promoção e de despromoção, em função do mérito desportivo dos clubes, são o núcleo de qualquer competição".
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Segundo a EL, uma competição fechada como a superliga de que se fala, "abalará a sustentabilidade do futebol profissional na Europa", colocando-se ao lado da UEFA, apesar das visões que nem sempre comungam, nomeadamente a questão das quatro vagas certinhas na Champions para os quatro melhores classificados campeonatos (quer reduzir para três).
São inúmeros os comentários e opiniões no planeta digital. Pomos o foco num deles, mais especificamente na crónica de Tim Wigmore, do sítio britânico INews.com que assina várias peças sobre o assunto, e que diz que "a americanização do futebol europeu abrirá um fosso enorme entre os clubes mais ricos e os mais pobres".
Mas põe o dedo na ferida: "As negociações foram conduzidas em segredo, mas não num segredo muito profundo. As fugas de informação sobre uma eventual superliga [o que acontece com alguma frequência] serviram sempre um propósito muito útil. Quanto mais a UEFA e a restante Premier League consideram a separação uma ameaça real, torna-se mais fácil aos maiores clubes orientarem o futebol europeu conforme a sua vontade".
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O que nos leva ao desabafo do presidente do Marselha, Jacques-Henry Eyraud, ao afirmar que a liga fechada já existe: "Paremos com a hipocrisia. Nas instituições europeias, a liga fechada é um elefante na sala. Todos o pensam, mas ninguém o diz. A verdade é que já está a ser trabalhada".
Como no início do texto, a vertigem do lucro é contagiante. E parece não haver antibiótico capaz de a debelar. Um pouco como sempre, só um punhado de homens convictos e com mais vontade de trabalho do que de cargos poderá impedir este onda de magma, que se espalha muito devagar, mas não deixa pedra sobre pedra.
E se não for o magna, pode bem ser um tsunami com origem no embate das placas tectónicas que são a FIFA e a UEFA, no que diz respeito à organização do Mundial de Clubes, conforme também foi notícia na semana passada.