FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Estados Unidos e China dominaram o medalheiro olímpico - sem surpresa, tendo em conta a base de recrutamento e o investimento de cada um. Mas quase pode dizer-se que o resultado é modesto se comparado, por exemplo, com Cuba e Nova Zelândia, com 11,3 milhões e 5 milhões de pessoas para 15 e 20 medalhas respectivamente, contra 113 dos EUA e 88 da China, num universo de 330 e 1398 milhões de almas.
As duas grandes potências dão cartas nas modalidades de pavilhão e pista mas, no futebol, por muito que tentem, não conseguem dar o salto quântico. Na China, a importação de jogadores e treinadores estrangeiros já estava em queda antes da pandemia. A estratégia incluía o lançamento das fundações dum viveiro que fornecesse, a longo prazo, uma selecção nacional à altura do novo império do meio - ou que pelo menos fosse presença regular nos Mundiais. Enquanto produziam o homem novo na forja dum socialismo regional, com vitaminas do capitalismo de Estado, criavam um berçário da bola que emulasse as glórias do berçário olímpico.
Os Estados Unidos ensaiam a aproximação ao primeiro mundo do futebol e continuam a contratar nomes em fim de carreira, como fizeram com Pélé e Eusébio nos anos setenta. Apesar disso, o futebol não contagiou os jovens americanos, ao contrário das mulheres, que veem nele um terreno de afirmação e já ganharam quatro torneios mundiais em oito possíveis, além de quatro ouros olímpicos - o Canadá foi campeão em Tóquio.
Os novos e sofisticados planos quinquenais não logram aplicar a sua metodologia planificadora ao futebol, talvez por ser esquivo. Um miúdo dum bairro de Buenos Aires terá mais jeito do que um miúdo dum bairro de Xangai ou de Chicago por nascer num habitat impregnado de história. Planificar ajuda - e Portugal é um exemplo ao ter melhorado em trinta anos as condições para o talento medrar - mas não teria sido possível sem os clubes históricos. É desse húmus que brotam os miúdos que se deitam e acordam a pensar em fintas novas.
No 71º congresso da FIFA, a federação saudita propôs que o Mundial seja disputado de 2 em 2 anos, e 166 federações aceitaram debater a proposta. Será derrotada, mas isto indica que o eixo do poder vai rodando para o Levante - e o Mundial no Qatar em Dezembro do ano que vem é o primeiro sinal prático. Tal como as multinacionais que capturam sectores estratégicos de países frágeis e ditam as regras, o novo patronato quer mais provas nos calendários e esmifrar os jogadores como bonecos de play-station. O plano é capitalizar o streaming e fazer do futebol um refrigerante que vá bem com pipocas. Os chineses saltaram do barco por ser demasiado capital para retorno duvidoso. Deste lado, não há como saltar, o futebol é uma paixão histórica. É rezar para que o bom senso prevaleça.
Entretanto, celebramos 4 medalhas olímpicas com honras de Estado, apesar do desporto escolar não ser uma prioridade de Estado. No dia em que chegarmos às 30, cada medalha será uma normalidade desportiva e não uma espécie de anomalia triunfal.