PLANETA DO FUTEBOL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
Corpo do artigo
1 A chuva molha a relva e os jogadores mas não molha as táticas. Num jogo disputado em papel quadriculado tático encharcado, a ordem portista na ocupação dos espaços sem bola marcou desde o início a tendência de jogo. Liberdade condicionada (à transição defensiva) para atacar.
Do outro lado, a equação de ter de "atacar mas com cuidado" que, quase sempre, coloca qualquer equipa numa limbo existencial que acaba por medir excessivamente o risco entre ficar e sair.
O Sporting sentiu a obrigação de assumir o jogo (sem perder equilíbrio nesse limbo). O FC Porto sentiu a possibilidade de poder gerir o jogo (garantindo equilíbrios sem bola como princípio).
2 Ver Ugarte é ver hoje, em termos individuais, o crescimento da personalidade com bola do Sporting. Onde existia o "sair a pressionar para roubar" de Palhinha, existe agora o "sair a jogar para construir" que a amplitude periférica com bola de Ugarte dá na metamorfose tático-existencial de n.º 6 para n.º 8 (ultrapassando, muitas vezes, Matheus Nunes nessa posição e espaços de invasão).
Era, porém, pouco para perfurar um meio-campo portista que tem hoje a combinação de cadeado e abre-latas incorporada. Nota-se desde o fechar de Grujic com Vitinha a abrir janelas na transição defesa-ataque para servir uma segunda linha habitada em vagabundagem com critério por Otávio e Fábio Vieira.
Com o jogo colocado nestes cenários e pensamentos, era como se ambas as equipas (cada qual a partir de local distintos) lhe dessem um nó sem sequer lhe colocar um laço (entenda-se, esta última parte, um rasgo imaginativo dos seus maiores criativos).
3 A melhor forma de segurar um jogo através da recuperação da bola em locais mais avançados (na prática, é a melhor forma de defender através da forma como atacar a... defesa adversária). Esta pode ser uma boa forma de descrever o jogo pressionante-controlador do FC Porto na segunda parte. A capacidade de impedir que o jogo (e o início que o Sporting esboçara) se tornasse numa ameaça para qualquer dos seus jogadores.
Às vezes penso que este tipo de jogos são como toda a pressão duma época condensada em 90 minutos. Isto é, mais do que mostrarem o que as equipas fazem para ganhar um jogo, mostram o que possuem para manter o controlo duma época inteira.
Este FC Porto de Conceição "versão ano V" adquiriu um poder de gestão da sua própria intensidade que antes não tinha. O segredo está na evolução das espécies de jogadores que fazem a expressão do seu jogo. O músculo passou a ser dominado pela técnica (e não o inverso) como princípio de maior respeito pela bola e suas diferentes formas de posse (desde a ofensiva para ganhar o jogo até à controladora para o gerir). Esta meia-final da Taça, de Alvalade ao Dragão, mostrou as duas na sua total dimensão.
O herói mais exótico
Tem um estilo físico encriptado de quase dois metros. Quando surgiu, há três anos, na baliza do Tondela, Babacar Niasse começou por intrigar mas, a cada bola que lhe chegava, o guarda-redes que parecia ir desmontar-se a qualquer movimento, revelava uma agilidade de borracha que levava às defesas mais impossíveis. Transmitia, ao mesmo tempo, uma serenidade imperturbável. A vocação emocional indispensável para ser guarda-redes. Foi o que surgiu na meia-final da Taça. Quando a equipa mais sofria, cresceu ainda mais num penálti defendido elasticamente junto à relva e poste.
Não existe melhor local do que a Taça para este tipo de heróis, únicos e exóticos. O Tondela chega à final ao mesmo tempo que luta pela fuga à descida. Entretanto, Pako Ayestarán que ganhara o primeiro jogo, foi despedido. Tão incompreensível como natural. Uma contradição na qual o futebol, quando se assusta (neste caso, com a descida), cai quase sempre.
Seja, porém, qual for o fim da história, já ninguém tira dela como herói um guarda-redes que parece vindo doutro planeta. Acredito que se a equipa (espírito e jogo) tivesse vivido nele mais vezes ao longo da época teria, talvez, evitado este drama final. Com a mesma serenidade exótica como Niasse está na baliza, homem-borracha com luvas.