PLANETA DO MUNDIAL - Opinião de Luís Freitas Lobo
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1 - Era dos tais casos em que, mais do que nunca, nem se devia sequer pensar. Quando a bola lhe chegasse, naquela sala de visitas em que os n.º 9 gostam de transformar a grande área, não havia mais nada a fazer para afastar qualquer nuvem: rematar!
Foi desta forma que imaginei, foi assim que vi Gonçalo Ramos. Numa posição que se imaginava privada de Ronaldo, ele surgia como a aposta da coragem de Fernando Santos. Uma opção seguindo avaliações de rendimento (acima, acredito, do vociferar de quem não gosta de ser substituído) e que mudava a cara do ataque de Portugal. E, assim, quando Gonçalo Ramos apanhou aquela primeira bola que lhe surgiu na área, mesmo quase sem ângulo e marcado em cima, saiu um remate fulminante, de fazer virar páginas da história, e a bola entrou como uma bala por um espaço quase impossível da baliza suíça.
2 - Num ápice, o jogo português que até começara hesitante soltou-se com o quarteto João Félix, Bruno Fernandes (mais abertos, partindo como falsos alas livres), Bernardo Silva e Otávio (mais por dentro, respetivamente, como "10" e "8") a fazer as trocas posicionais, rodando pelo campo todo, dentro do bloco suíço que perdera a precisão de coberturas como nunca sucedera neste Mundial.
Atrás, o "Totem-William Carvalho" como 6 de circulação simples e toque curto, na única posição em que um jogador está autorizado a ser lento de pernas mas a quem se exige ser rápido de leitura. Será esta a melhor forma de perceber-se o valor (e utilidade tática de equilíbrio coletivo) de William, o "patinho feio gigante" na visão popular mas que Santos não deixa cair e até lhe dá as chaves de casa da equipa. E vai-se embora descansado.
3 - Mais do que a qualidade foi a convicção com que Portugal jogou. Os jogadores deixaram de viver com dúvidas e passaram a interagir com certezas. Uma seleção a tocar a bola e a mover-se com alegria, expressa nas jogadas e na cara de cada jogador.
Como mudou essa expressão com as entradas no onze de Félix, Otávio e Bernardo Silva a jogar no meio. Quando a goleada tão cedo convidou a descomprimir, o 4x2x3x1 virou um 4x3x3 mais compacto e a equipa voltou a olhar para o jogo como então estava, com muitos espaços para atacar/contra-atacar.
E voltou a aparecer Gonçalo Ramos. Agora, já consciente de onde estava na sua primeira vez a titular na seleção. A bola e o golo iam ter com ele com naturalidade: a encostar oportuno ao primeiro poste, outro a receber isolado numa cratera na área suíça. Um "pistoleiro" que a partir de um "remate bala" virou a história da seleção portuguesa. Ronaldo, claro, não acabou, mas é evidente que, respeitando as leis da passagem do tempo, surgiu outro princípio para o nosso ataque (e, consequentemente, outros princípios para o nosso jogo coletivo).
O "tapete voador tático"
A posse de bola era da Espanha (de forma esmagadora). Quem controlava a bola era, porém, Marrocos (de forma indiscutível). Juntar estas frases pode parecer uma contradição, mas espelha as leis do futebol atual. Juntá-las é como que dar um "nó tático" num jogo, porque traduz a postura ofensiva espanhola mas sem criatividade coletiva para criar desequilíbrios e, ao mesmo tempo, a organização defensiva marroquina sem nunca dar espaços, fechando-se num 4x1x4x1 em expectativa mas com poucos contra-ataques. O jogo ficou atado num 0-0 apertado que só os penáltis decidiriam.
No global, porém, emergem os pilares de quem levou o jogo até lá com um "trinco de aço" que, entre as duas "linhas de 4", aguentou o peso tático do jogo todo: Amrabat. Existiam avançados truculentos com vontade de correr e fintar (Ziyech e Boufal) mas poucas bolas tiveram para isso. Quando isso aconteceu, Boufal ainda meteu o seu futebol sobre um tapete voador (finta e foge alucinante) mas a estratégia marroquina não queria tirar os pés da terra/relva. Segurou-se sem falhar um centímetro das coberturas e agarrou, assim, a história. Meteu-se nos "quartos" do Mundial e deixou, por fim, os seus jogadores correrem soltos, eufóricos, aos saltos, em direção à bancada com adeptos enlouquecidos.