PLANETA DO FUTEBOL - Uma análise de Luís Freitas Lobo
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1 - Dos jogos fora do circuito dos clássicos é aquele que para um adepto de, digamos, meia idade desperta mais memórias de grandes confrontos no desafio ao impossível assalto ao castelo dos grandes.
O Bessa foi sofrendo, desde aquele ambiente "inglês" de sábado à tarde à excessiva atualidade moderna, várias remodelações mas foi por ali que vi pela primeira vez essa ousadia com luvas pretas, memória do Alves n.º 10, com Pedroto no banco. Era miúdo mas há memórias que nunca se perdem. Falhou no jogo decisivo. Até que, um dia, esse impossível foi mesmo tornado realidade. Era o novo século e a faca de Pacheco com um "Platini boliviano", Sanchez, o n.º 10 ainda teimava em existir, conquistou o título utópico.
Não existe, claro, ponto de contacto entre o atual Boavista e os desses tempos. Muito mundo passou e mudou. Já não existe possibilidade dessa ousadia mas no banco está um homem, Petit, que foi, então no relvado como médio de garra, protagonista dessa era. O n.º 10 entretanto tornou-se uma quimera. Um anacronismo técnico que a dupla de médios "fica e sai"(isto é, "segura e pressiona") ocupou. Seba Pérez e Makouta fazem esse trabalho no meio-campo aos quadradinhos. Enchem o campo e assim Petit pode largar na frente avançados de travessura, como Yusupha e Salvador Agra (a personificação do contra-ataque que tantas vezes vira de pernas para o ar estes jogos).
2 - Esta é uma boa forma de colocar o "clássico do impossível" no tempo presente. É, também, o início de um novo ciclo de existência do Benfica de Schmidt pós-missão Champions. Depois da obrigação de ter rapidamente a equipa competitiva para esse início de época, o começar a construir os (talvez) mais verdadeiros pilares de referência para uma época inteira. O sistema pode até ir variando e, por vezes, ser mais um 4x3x3 com três médios. A chegada de Aursnes prenuncia essa alternativa tal como o aroma de jogo interior de João Mário, por mais que o desenho tático inicial o coloque na ala esquerda. É falso. Ele, no jogo, com bola, é, claramente, outra coisa, um médio-interior.
3 - Os jogos vão tornar-se progressivamente mais intensos, há mais pressão para recuperar a bola e menos espaços entre os sectores. As perguntas táticas vão mudar, veremos se as respostas (que até agora a equipa sabia de cor) irão mudar. A combatividade com especialização de finalizador fez de Gonçalo Ramos em pouco tempo um jogador diferente. O primeiro traço sempre foi evidente (por isso até jogava recuado a lutar ou aberto para arrancar com a bola), o segundo é que o pode (sem perder caráter) tornar uma referência de qualidade n.º 9 verdadeiro e não de jogador híbrido. Schmidt não quer esse jogador multifunções mas indefinido. Busca intérpretes concretos para um modelo de jogo.
O fim da classe média
Foi impossível superar ou disfarçar a diferença entre as duas equipas que, no fundo, espelham o abismo entre a chamada classe média do futebol português e do futebol holandês. Dois mundos que deviam estar próximos (pela similar dimensão geográfica-competitiva dos campeonatos) mas que, na realidade, se afastam a todos os níveis. Desde logo, no fosso de orçamentos (dos 6 milhões do Gil para os 40 M€ do AZ, ambos os quintos classificados de cada liga) e que se traduz em campo na matéria de jogadores que fazem as duas equipas (além da experiência europeia). A questão da luta pelo 6.º lugar no ranking da UEFA é, pois, uma ilusão que os grandes mantêm. Não existe uma quinta equipa europeia portuguesa. Após Santa Clara, Paços e V. Guimarães, também o Gil falhou a entrada na fase de grupos da Conference League (a III Divisão europeia).
O onze de Ivo Vieira (produto dum clube de crescimento sustentado) fez história para si, teve bons momentos nos jogos, ficou com o trago daqueles dez minutos finais na Holanda onde tudo fugiu, fez o segundo jogo a gerir a equipa. Era injusto pedir-lhe mais. A quem devemos pedir mais é à consciência organizativa (financeira-competitiva) do nosso futebol. Será difícil admitir mas é evidente: a classe média pura e simplesmente desapareceu.