FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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O ucraniano Mudryk é a nova coqueluche do Chelsea, ao lado de Félix e Enzo.
Vindo do Shakhtar Donetsk, confirmou na estreia, em Liverpool, uma técnica acima da média para jogador eslavo.
Andava meio mundo atrás dele, incluindo o Arsenal, líder da Premier League, que não pôs na mesa os 70 milhões de euros exigidos, mais os 30 por objectivos. O Shakhtar fez saber que um terço da maquia será doado às forças armadas da Ucrânia, talvez para custear um fundo de viúvas do exército, onde Mudryk estaria incorporado se não fosse tão bom de bola.
Durante a nossa guerra colonial, os jogadores em idade de assentar praça não tinham isenção da tropa, mas os vinculados aos clubes grandes ficavam nos quartéis da metrópole a cumprir tarefas auxiliares e com licença para treinar. Se, por distracção do sistema, algum fosse mobilizado para África, só por castigo acabava na picada. Os melhores iam à selecção militar, presença assídua no torneio europeu da NATO, que Portugal venceu antes da guerra, em 1958, com craques como Coluna e Hernâni.
Em tempo de paz, o futebol é o jackpot que muitos jovens buscam para subir na vida, mas só uma minoria o alcança. Em tempo de guerra, essa minoria é duplamente privilegiada por ter talento e pelo valor actual do futebol face a outras modalidades. O desporto tem filhos e enteados. Há 3000 mil atletas na frente, 250 mortos, entre eles o antigo campeão sub-20 do decatlo, Volodymyr Androshchuk, caído no anel sangrento de Bakhmut com a idade de Mudryk: 22 anos. Esta semana, Shakthar e Dnipro jogaram eliminatórias da UEFA com jovens que estariam na frente de combate se não fossem profissionais.
Ao ver Mudryk passeando a sua classe em Anfield, pus-me na pele dum atleta soldado e tentei imaginar o que lhe vai na cabeça numa trincheira gelada com varanda para a morte, enquanto Mudryk é autorizado a ir para Londres jogar futebol e ganhar balúrdios. Sem esquecer o operário e o pedreiro levados na malha do recrutamento obrigatório por não terem um ofício considerado imprescindível pela logística da guerra. Alguns, mais velhos, terão ajudado a construir a Donbass Arena - palco do Europeu de 2012 e casa de Paulo Fonseca em Donetsk - até ser atingida pelos primeiros obuses em 2014; sem eles, talvez a academia do Shakhtar não existisse e talvez o juvenil Mudryk não tivesse desenvolvido a técnica que lhe permite transitar hoje entre Stanford Bridge e o bairro rico onde reside, Kensington ou Belgravia, a salvo do sinistro grupo Wagner e dos criminosos libertados das prisões.
Em Portugal ontem, como hoje na Ucrânia. O futebol abre excepções e livra do horror, mas só os que sobreviverem ao delírio de Putin serão fundamentais para reerguer as cidades arrasadas e as mais de 300 instalações desportivas reduzidas a ruínas, piscinas, centros de treino. Até lá, agora que o governo de Zelinsky agravou as penas para desertores e refractários, a pergunta corrosiva continuará a ressoar na alma do atleta anónimo no fundo duma trincheira: "porquê eu e não Mudryk?"