PLANETA DO MUNDIAL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
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1 Jogar contra a esta Croácia, catedrática-balzaquiana a nível do seu meio-campo conhecedor de todos os ritmos, é como jogar contra um programa informático futebolístico preciso e de sabedoria acumulada. É o "hardware tático" Brozovic-Kovacic-Modric.
Podia ganhar esta Argentina, reconvertida num 4x4x2 com duplo-pivô Paredes-Enzo para cobrir espaços atrás mais centrais pressionando alto ao mesmo tempo? Não era fácil. E é difícil ter essa iniciativa/ousadia.
Porque quando se mete atrás, esta Croácia sábia, tecnicista e de gestão (tática e esforço) mete-se mesmo atrás.
A chave? Enzo Fernández, um jogador para saltar desse espaço estratégico recuado e chegar à frente, rompendo e passando. Assim chegou aquela bola a Julian Alvarez, um avançado total, n.º 9 puro (está na camisola), solto ou vindo da faixa, jogando com orgulho de bairro no estádio cheio de um Mundial, borbulhas de "pibe", garra genética, sem medo de nada.
Ganha um penálti (Messi marca) e faz um golo arrancando por entre as entranhas da área croata. A "Scaloneta", o sistema-Scaloni dos três centrais contra a Holanda ao regresso às bases 4x4x2 contra a Croácia, tinha pensado em tudo. Como fechar-se, pressionar e sair. Até marcar.
2 Poderia esta Croácia, porém, ter uma existência diferente? Tentou-o ao meter um segundo n.º 9 de força, Petkovic, tirando uma peça da sala de máquinas (a bússola Brozovic). A reação do "processo-scaloneta" ao meter um terceiro central (Lisandro Martínez e passar para três centrais, 5x3x2) podia mostrar tanta astúcia defensiva como medo que fizesse a equipa recuar.
Podia ser isso num mundo humano-futebolisticamente normal, mas quando Messi (que acabara a primeira parte a queixar-se de uma dor, no joelho, coxa, tornozelo, que importa?) pegou na "pelota" bem longe da chamada zona de perigo, desde a faixa direita, e a partir daí inventou uma jogada "maradonianamente abençoada" dando outra bola de golo feito ao "pibe" Alvarez, borbulhas de goleador, tudo aquilo já não era futebol. Era um jogador de futebol a pisar a lua e a dar a terra relvada aos outros. Messi tem alma de "barrilete cósmico".
Era o 3-0 e já podíamos olhar também para outras "chaves das pampas". Como Mac Allister, esse médio que mete tudo naquele meio-campo, e um lateral-esquerdo renascido, Tagliafico, que fechou e subiu quando devia. Um onze argentino que saiu do "inferno das arábias" do primeiro jogo até à final sonhada.
3 Vénia para um poeta que também estará no último Mundial. Modric. Viu a casa onde nasceu destruída pelas bombas duma guerra fratricida e, com olhar de ternura pela bola, levou pelo mundo o que era poesia e nobreza através de como jogar futebol. Jogou, aos 37 anos, como sabe, ensina e os limites físicos lhe permitiam. Uma lição de como estar em campo e ver o jogo. Génio!
Amrabat: símbolo de "carne e osso"
Se nas grandes seleções das meias-finais há símbolos como Mbappé, Messi e Modric, em Marrocos, vindo de outro mundo de futebol, acariciando o sonho impossível, o símbolo é feito de outra matéria futebolística e mediática: Sofyan Amrabat, médio-centro estilo "trinco old school" que num 4x1x4x1 tático-defensivo é um posto de segurança intransponível.
Não faz, atenção, marcações individuais. A sua especialidade é chegar primeiro nos espaços e coberturas. Parece que cresce em cada jogada e, vendo bem, até parece também que aumentou muscularmente em relação ao que víamos na Fiorentina, onde joga.
Não tem de base a cultura de jogo marroquina, onde nunca jogou. Nasceu na Holanda, onde cresceu e jogou até à seleção sub-15 quando viu então a jogar o irmão, extremo nove anos mais velho, no meio dos adeptos marroquinos e nesse momento (nos sub-17) quis voltar às raízes perdidas. No fundo, um sentimento que prova como, antes de tudo, uma seleção é uma comunhão de emoções.
Eleger um trinco destes como símbolo de uma equipa pode levar logo a rotulá-la de defensiva, mas o onze de Regragui (como Amrabat) é muito mais do que isso. É organização e alma. Falta saber uma coisa neste Mundial: como reagirá a tudo isto se sofrer um golo primeiro e tiver de ir atrás do resultado?
TÁTICA
A passagem da Argentina ao 5x4x2 com duplo-pivô
O trabalho tático incrível do médio Mac Allister
TÉCNICA
Messi e a bola. A mesma matéria, o mesmo corpo
Vénia a Modric, poeta croata de futebol