Há privados a assediar as maiores competições de várias modalidades, fazendo perigar o controlo sobre doping e apostas, mas os dirigentes preocupam-se sobretudo com os "valores solidários".
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"Temos de nos opor a modelos competitivos centrados no dinheiro e que tratam os atletas como ativos. As organizações desportivas baseadas no voluntariado e na inclusão social estão a ser ameaçadas por organizações comerciais que querem ficar com as cerejas do nosso desporto. Querem levar os frutos das árvores que nós plantamos e fizemos crescer ao longo de muitos anos", discursou Thomas Bach, presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), há um mês, na Assembleia Geral dos Comités Olímpicos Europeus.
O alemão de 64 anos estava a assumir publicamente a batalha, que por enquanto se trava em gabinetes e já começa a passar por tribunais, pelo controlo das grandes competições mundiais, assediadas por interesses privados. Está a acontecer no futebol, mas não só. Basquetebol e natação são outros de vários exemplos, sendo importante o da... patinagem de velocidade no gelo.
As preocupações dos dirigentes olímpicos agudizaram-se há um ano, quando a Comissão Europeia impediu a União Internacional de Patinagem (ISU) de irradiar Mark Tuitert e Niels Kerstholt, dois holandeses profissionais da patinagem de velocidade no gelo, que tinham participado no "Ice Derby", torneio milionário pago por sul-coreanos. As regras da ISU, prevendo de cinco anos de suspensão até à irradiação, foram consideradas "monopolistas" - "servem para proteger os seus próprios interesses comerciais, evitando que outros promovam eventos", considerou a comissária europeia Margrethe Vestager -, e a decisão foi vista como uma nova "lei Bosman", a que em 1995 revolucionou o mercado de transferências de futebolistas.
Com o olimpismo entretanto ameaçado numa segunda frente, pois o ano abriu com a liga americana de hóquei no gelo (NHL) a manter o seu calendário, impedindo os principais profissionais de competir nos Jogos de Inverno, em Pyeongchang, a liberdade de participação em competições preconizada pela Comissão Europeia deu força à discussão entre a Federação Internacional de Natação (FINA) e os seus principais atletas, seduzidos pelas propostas da privada ISL (International Swimming League), uma organização sustentada pelo bilionário ucraniano Konstantin Grigorishin e que se propunha dar 135 mil euros a cada atleta que participasse numa série de torneios em todo o mundo, lutando ainda por um bolo de 700 mil euros em prémios. Acusando a FINA de apenas dar 0,03% dos seus proveitos aos nadadores, a organização prometia 32%.
Responder sempre com mais dinheiro
Em causa, seja futebol ou patinagem, está sempre o dinheiro. E a resposta da FINA, entretanto levada a tribunal por três atletas, foi quase duplicar o valor dos prémios no recente Mundial, em Hangzhou, e criar um circuito de natação ainda mais milionário: três torneios, reservados a campeões olímpicos e mundiais, com provas em apenas quatro pistas e um total de 3,4 milhões de euros em prémios. A solução - já contestada por Grigorishin - vai ao encontro do que há muito se vê no futebol, com os sucessivos aumentos dos prémios monetários da Liga dos Campeões, embora o maior desporto mundial pareça já estar a caminho de uma nova e ainda mais milionária fase. Em aliança com privados.
Em outubro passado, a FIFA propôs oficialmente um novo Mundial de Clubes, a jogar a cada quatro anos por 24 das maiores equipas mundiais, e uma Liga das Nações mundial (para seleções), com o presidente do organismo, Gianni Infantino, a revelar ter um consórcio privado disposto a investir 27,7 mil milhões de euros por um período de 12 anos. As empresas não foram reveladas, mas tudo indica tratar-se do gigante de telecomunicações japonês Softbank e da Arábia Saudita, este um apoio controverso depois de o príncipe Mohammed bin Salman ter sido acusado de mandar executar o jornalista Jamal Kashoggi. A UEFA opôs-se à ideia da FIFA, temendo a concorrência à Champions League, e o assunto voltará a ser debatido em março.
De Ronaldo ao "esfoço dos voluntários"
"Já vimos, com a Euroliga, a forma como interferem no trabalho do basquetebol europeu e tornam quase impossível organizar torneios de seleções", apontou Thomas Bach sobre a competição de basquetebol que se tornou privada em 2000 e mantém um conflito aberto com a FIBA.
O excesso de jogos é precisamente o problema que o futebol enfrenta, mas o domínio de privados e de interesses comerciais pode abrir portas a outras ameaças, como um menor controlo do doping e do mercado de apostas. Curiosamente, e sendo as federações acusadas de reservar a maior fatia do bolo, o COI prefere defender-se com um discurso antigo. "Os nossos valores do desporto baseiam-se na solidariedade, inclusão e no esforço de milhões de voluntários", diz Bach, lembrando que um "Ronaldo não pode ser comparado a um atleta do remo ou a um jovem lutador" para criticar as ligações dos representantes de atletas a interesses comerciais.
Futebol na dança dos biliões
Real Madrid, Barcelona e vários clubes da Premier League, como Manchester United e Liverpool, já se mostraram interessados na nova ideia da FIFA: um Mundial de Clubes, de quatro em quatro anos, para 24 equipas, garantindo algo como 110 milhões de euros a cada uma. A UEFA disse que não e Gianni Infantino viu-se obrigado a criar uma "task force" da FIFA, para estudar a viabilidade das provas - também propõe uma Liga das Nações mundial, de dois em dois anos -, e apresentar soluções, sobretudo de calendário, em março do próximo ano. A UEFA alega com a falta de datas, mas mais do que o excesso de competições para os futebolistas estará preocupada com o dinheiro. A FIFA tem investidores dispostos a entrar com 27,7 mil milhões de euros (anunciados, à americana, como 25 biliões de dólares), uma verba tão elevada que a sua origem (o príncipe saudita Mohammed Bin Salman) passou a ser secundária e o cansaço dos jogadores será solucionado. Aliás, um Arsenal com 28 jogadores, o Real Madrid com 27, os dois clubes de Manchester com 26 e Liverpool e Barcelona com 25 já estiveram mais longe de uma solução como a do World Tour do ciclismo, onde os plantéis são tão extensos que permitem fazer até três competições ao mesmo tempo!
O Canal Olímpico como exemplo
"As federações internacionais foram ultrapassadas na organização de eventos por privados e correm o risco de perder o poder de apurar os campeões do mundo. O negócio está a chegar; as federações têm de desenvolver uma mentalidade mais virada para ele. Os organismos que gerem o desporto têm de ser proativos", afirmou Marisol Casado, presidente da União Internacional de Triatlo (ITU), há duas semanas, em Cascais, na Convenção Memos.
Realizada em Portugal, a Memos foi um interessante debate sobre o futuro do desporto. E o triatlo, sendo uma modalidade jovem, é um exemplo naquilo que a sua presidente defendeu: "Produção de conteúdos de vídeo; trabalho com parceiros da área digital, incluindo redes sociais, para conhecer o comportamento dos consumidores; menor dependência das transmissões televisivas." Nas ideias da madrilena de 62 anos enquadra-se um passo já dado, a criação do Canal Olímpico, em 2015. "Para o desporto sobreviver, precisamos de diversidade nas televisões", explicou em Cascais Jochen Farber, diretor do Olympic Channel, detalhando tratar-se de uma "multiplataforma digital que fornece informação de todas as modalidades" e se preocupa sobretudo com "uma audiência millennial", procurando a interatividade e apostando nos eSports. Sendo um exemplo na forma de evitar a dependência dos operadores televisivos, o Canal Olímpico não é um passo inédito, apenas mais um: no futebol já abundam os canais de clubes e Portugal até passou a ter um da FPF.
Jogos Europeus: a outra batalha
Entre 21 e 30 de junho de 2019 vão estar em Minsk, na Bielorrússia, cerca de 4000 atletas, de 50 países e 15 modalidades, nos segundos Jogos Europeus. Do êxito dessa edição dependerá a existência das seguintes, pois a competição criada pelos Comités Olímpicos está em guerra com várias federações internacionais, que no passado verão se juntaram em Glasgow, para os denominados Campeonatos Europeus. Mais uma vez discute-se dinheiro, em especial o das televisões. Em Minsk não haverá natação nem triatlo e o atletismo será no estranho formato Dynamic Athletes, pois essas são três das modalidades da "oposição". Os olímpicos contrapõem com a "oferta" de lugares de qualificação para os Jogos de Tóquio.