Vladimir Putin já "mandou" recorrer do afastamento por quatro anos das competições mundiais, mas a decisão da Agência Mundial Antidopagem dificilmente será revertida e significará um abalo de consequências imprevisíveis para aquela que já foi a segunda maior potência desportiva do planeta
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Quando Grigory Rodchenkov aceitou participar no documentário "Icarus", ensinando o americano Bryan Fogel a enganar o controlo antidoping em corridas de ciclismo amador, o Óscar que premiou esse trabalho de 2017 era apenas a ponta de um icebergue.
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O russo de 61 anos, diretor do laboratório antidoping de Moscovo, era, ao mesmo tempo, um denunciante que viria a gerar o maior abalo da história no desporto do seu país. A Agência Mundial Antidopagem (AMA), dando como provado que os russos continuaram a falsear controlos, afastou-os esta semana das competições mundiais durante quatro anos.
É a maior pena de sempre no desporto e pode afundar de vez a competitividade desportiva do país, que já discutiu os Jogos Olímpicos, medalha a medalha, com os Estados Unidos. Ou talvez não, dependendo do número de atletas e equipas que forem autorizados a continuar a competir sem bandeira e hino.
Quando se olha à realidade do desporto russo, interfere essencialmente com os Jogos Olímpicos. No futebol, os russos nunca foram campeões mundiais e só brilharam nos Europeus nos tempos da União Soviética, com um título e mais três finais entre 1960 e 1988. A nível de clubes, nem o investimento dos oligarcas russos resultou: só na Liga Europa, ganha por CSKA Moscovo (2005) e Zenit (2008), existem êxitos.
Vladimir Putin (Presidente da Rússia) - "Não se trata de defender o desporto limpo, mas sim de considerações políticas que nada têm a ver com o Movimento Olímpico"
Talvez por isso, no tocante ao futebol a pena é ambígua, sabendo-se que a Rússia poderá disputar o Europeu e a qualificação do Mundial, e sendo incerto se jogará com bandeira neutra caso se apure para a fase final, no Catar, em 2022.
A situação do futebol, que já levou a FIFA a pedir esclarecimentos, pode ser importante para outros desportos em que os russos são bem mais competitivos, embora digam menos aos portugueses.
No voleibol, possuem seis títulos mundiais e um total de 12 pódios nos Mundiais masculinos, mais sete títulos e duas finais perdidas em femininos. No hóquei no gelo, são 27 títulos mundiais entre União Soviética e Rússia, sendo a modalidade um exemplo do que poderão ser os próximos anos: em 2018, nos Jogos de Pyeongchang, a equipa dos "Atletas russos" foi campeã, subindo ao pódio com a bandeira olímpica.
"Já tivemos isto antes, nos últimos Jogos. Não aconteceu nada de horrível", disse Dmitry Svishev, presidente da Federação Russa de Curling, à Reuters, traçando aquele que poderá ser o cenário dos Jogos de Tóquio"2020 e de inverno em Pequim"2022. O facto de ser proibida a bandeira mas não os atletas deixou muitos responsáveis irritados com o real alcance da pena, sobretudo americanos, mas não só. "Parece uma decisão dura, mas eles vão continuar a competir nos Mundiais, nos Jogos e até no futebol. Não se sente isto como uma punição adequada ao crime", desabafou Vitoria Aggar, presidente do comité olímpico britânico, ao "Times".
Mas a verdade também não será essa. Em Pyeongchang alinharam 168 atletas russos, um número dentro do habitual, mas apenas conseguiram 17 medalhas e com duas de ouro. O 13.º lugar no medalheiro foi o pior de sempre e contrasta com aquele que seria o objetivo do esquema de dopagem em que o Estado foi conivente: contrariar a ascensão de Grã-Bretanha e China, que são atualmente os maiores rivais dos Estados Unidos, relegando a Rússia para a quarta posição nos Jogos de Verão, e também manter um total de medalhas olímpicas (verão e inverno) superior ao dos americanos - 1912 para a Rússia, 1872 para os EUA - desde que, em 1952, se iniciou o maior duelo desportivo do planeta.
Vitoria Aggar (presidente da Comissão de Atletas Britânicos): "Parece uma decisão dura, mas eles vão continuar a competir. Não se sente isto como uma punição adequada ao crime"
"Temos tudo para recorrer. As punições devem ser individuais e não coletivas, afetando os que nada têm a ver com determinadas violações. Isto leva a acreditar que não se trata de defender o desporto limpo, mas sim de considerações políticas que nada têm a ver com o Movimento Olímpico", comentou Vladimir Putin a meio da semana, tocando no ponto certo: o desporto, que nos anos da Guerra Fria EUA-União Soviética levou os dois blocos a incríveis abusos de doping, continua a ser palco de batalhas políticas.
Se o presidente russo sabe do que fala, por cá José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, também sabe que foi por aí que o escândalo de dopagem floresceu. "O objetivo é penalizar o sistema desportivo russo e a sua liderança política. Uma medida desta natureza não é apenas desportiva", disse a O JOGO, admitindo que ainda não é possível "avaliar o alcance da medida". "Espera-se que valha pelo menos para que o país cumpra as suas obrigações em matéria de luta contra a dopagem e, se isso for conseguido, é positivo", completou Constantino.
José Manuel Constantino (presidente do COP): "Espera-se que valha pelo menos para que o país cumpra as suas obrigações em matéria de luta contra a dopagem"
TRÊS QUESTÕES A JOSÉ MANUEL CONSTANTINO (Presidente do Comité Olímpico de Portugal)
1 - Que representa para o desporto mundial estar quatro anos sem a Rússia?
- É difícil de avaliar, até porque se ignora o quadro e o número dos atletas russos a quem vai ser permitido competir. De todo o modo, é sempre a ausência de um dos mais importantes países do contexto desportivo internacional, com uma história desportiva valiosíssima. E a sua ausência ou participação limitada reduzirá seguramente a competitividade internacional.
2 - Como se justifica um esquema de dopagem tão complexo? Seria para não perderem competitividade, face às ameaças britânica e chinesa?
- De há muito que os resultados das competições não têm um valor exclusivamente desportivo; têm também um valor económico e político. O que explica que as políticas dos Estados tenham investido fortemente na criação de valor desportivo e na respetiva competitividade, porque por aí passa muita da afirmação política no contexto internacional. Como o rendimento desportivo é crescentemente medicalizado, canalizam-se para os sistemas de preparação desportiva recursos avultados e sistemas sofisticados, procurando a melhor forma de otimizar o rendimento dos atletas. Muitos desses procedimentos são passíveis de se incluírem em comportamentos de dopagem, como agora foi o caso, agravado pelo facto de o acesso aos resultados das análises supostamente ter sido adulterado. Mas nada nos garante que estamos perante um caso único e não existam situações similares em outros países, até porque a descoberta desta situação não resultou de um sistema de controlo externo e só ocorreu porque houve denúncias a partir do interior do sistema russo.
3 - Uma medida destas pode aumentar as hipóteses de Portugal ganhar medalhas?
- Não o sabemos. Só após conhecermos a lista dos atletas russos participantes, designadamente nas disciplinas onde a nossa competitividade é maior, poderemos fazer essa avaliação.
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