"Nenhuma equipa que tenha Ronaldo pode deixar de se articular à sua volta"
ENTREVISTA (parte 1) - Fernando Santos ao microscópio de uma conversa de amigos, fora do tom habitual das entrevistas. Suíça e Holanda explicadas, a formação sem demagogias, os sub-19 do FC Porto, João Félix, os centrais e mais.
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A convite da Federação, os diretores de O JOGO, Record e A Bola almoçaram com o selecionador na Cidade do Futebol e digeriram com ele a Liga das Nações acabada de ganhar. Foi uma conversa livre, a quatro, talvez intraduzível pelos formatos habituais, mas cheia de conteúdo e sinceridade. Uma peça única.
"Também pensei, vocês jogam com três lá atrás, vou lá pôr dois homens, um vai ficar sem ninguém para marcar e vocês vão ter que se baralhar".
O diagnóstico da Suíça: são mesmo três centrais
"Os meus colaboradores disseram-me que eles estavam a jogar com três centrais. Olhas para a ficha e parece que estão a jogar com uma linha de quatro, porque o Rodriguez é lateral-esquerdo. Mas não. No jogo com a Bélgica, estão a perder 2-0 em casa, totalmente vulneráveis ao contra-ataque, e o selecionador manda o Rodriguez ficar parado atrás, coloca o Zuber na ala esquerda e o Zakaria a jogar pelo corredor direito. Vou ver o jogo com a Dinamarca e jogam exatamente da mesma forma."
O método Santos em poucas etapas
"O meu planeamento é simples: posse de bola, entramos a jogar em ataque organizado, 80% do tempo e 20% a utilizar o ataque rápido. Quando perdemos a posse, recuperamos rapidamente; quando defendemos, fazemo-lo a apertar. Mas também preciso de limitar o adversário, para ter bola e poder jogar."
Como resolver o problema Xhaka
"Quem é o mentor do jogo? Xhaka. Na saída de bola, é ele. Jogam 1x2 no meio-campo, com dois avançados. Quando começo a arquitetar a minha equipa, penso que, se jogar 2x1, eles são três e vão sempre sair a jogar; se jogo 1x2 no meio-campo, o Xhaka recebe quando quer. Vou andar sempre à nora."
"O primeiro treinador a jogar 4x4x2 losango sou eu, no Sporting, pelo menos com consistência e durante muito tempo. Fazia-o com Rochemback, o Pedro Barbosa, o Custódio, o João Pinto, o Liedson e o Silva. E depois no Benfica, com o Nuno Gomes, o Simão e o Miccoli"
Mas também o problema Shaqiri
"Pareceu-me claro que, em vez de jogar 4x3x3 clássico, devia pôr alguém a matar o Xhaka. No primeiro momento, pensei em jogar 2x1, mas quando estou a ver os vídeos, percebo que o Shaqiri faz muitos movimentos entre o meio-campo e a defesa do adversário e aproveita muito bem aquele espaço. Tinha de matar esta hipótese também, para não ter a equipa abananada. Decidi-me a jogar losango, como joguei quando cheguei à Seleção. O apuramento para o Euro foi todo jogado em losango, com William no meio, Moutinho à direita, Tiago à esquerda, Danny diante deles e Nani e Ronaldo na frente."
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Bernardo dois em um: ladrão e criativo
"Com a Suíça pensei que tinha de limitar a capacidade deles de terem bola. Ponho o Bernardo, 90% das vezes, a jogar à direita. Batiam-me porque ele tinha de jogar ao centro e parece que agora, afinal, já joga à direita. Também jogou ao meio e até jogou a 6, não sei se repararam. O Bernardo joga em qualquer lado. E quando joga no meio, nunca joga a dez. O dez do city é o David Silva. O Bernardo faz seis/oito. Tem liberdade para atacar, mas ele é que é o segundo a defender. É o jogador que mais corre e o que mais bolas recupera. Nesse aspeto, tem muito de Deco, que tinha aquela qualidade e era dos melhores recuperadores que havia. O Xhaka não é muito rápido, vou pôr-lhe em cima um criativo. Na primeira fase, vou bloqueá-lo; se conseguir roubar-lhe a bola naquele sítio, tenho ali um supercriativo que lhes vai criar problemas. Depois, as coisas saem bem ou saem mal."
"No apuramento para o Mundial, jogámos 4x3x3 na Suíça e foi umabarraca do caraças. Levámos com contra-ataque que nunca mais parava. Depois passámos para 4x4x2 e as coisas melhoraram. E aqui jogámos 4x4x2"
Autópsia de um jogo mal conseguido
"Já vi o jogo duas ou três vezes, e disse aos jogadores que não jogámos tão mal como parece. Em primeiro lugar, houve ansiedade. Durante dez minutos, os meus jogadores corriam a tudo. Parece que aquele falhanço inicial do guarda-redes suíço lhes deu a ideia de que podiam roubar a bola em qualquer lado, fazer golos e não sei que mais. Isso levou a equipa a desgastar-se e a partir-se muito. Em termos de posse, nos jogos com a Ucrânia e a Sérvia fartámo-nos de circular e faltou-nos objetividade. Agora foi ao contrário. Chegávamos ao meio-campo e cruzávamos a bola. Podem dizer que foi por termos lá na frente dois homens. Se calhar. Estavam sozinhos, porque não continuaram a jogar? Houve uma espécie de ansiedade de pôr lá a bola. Também nos faltou controlar os ritmos do jogo. Se não fizeres isso, vais ter um desgaste muito grande."
Ronaldo fixo ou Ronaldo livre
"O Ronaldo nunca se negou a nada. Se lhe disser para jogar mais fixo, ele vai. Fez isso algumas vezes no campeonato da Europa muito bem. Não há constrangimento da nossa parte, nem da parte dele. Mas é muito difícil pôr alguém a jogar de costas para a baliza sem ter nenhuma característica para isso. Não posso pedir a um jogador como o Ronaldo para o fazer. É impossível. Se eu lhe disser para jogar fixo, só para receber e jogar para trás, ele vai, mas depois, se calhar por tendência, ao fim de cinco ou dez minutos anda lá na esquerda e eu não tenho ponta de lança. Foi embora. Nenhuma equipa no mundo que tenha Messi ou Ronaldo pode deixar de se articular à volta deles. O resto é fantasia."
"Se calhar 20% da crítica é informada. Quando ouvi que ganhámos o jogo porque dei ordem ao William para ir com o De Jong à casa de banho... Desculpem lá"
Se a Suíça é a crónica do desacerto, a Holanda, final da Liga das Nações, é a crónica da pontaria afinada e uma lição de como se trata a insegurança. Mas também de uma análise que irritou Fernando Santos pelos aplausos errados que recebeu. Também há disso.
William a marcar De Jong? Vejam o filme
"A Holanda joga de uma forma completamente diferente. Ouvi em qualquer lado que o William tinha ordem para ir atrás do De Jong mesmo que ele fosse à casa de banho. Ora, eu nunca mandei marcar ninguém homem a homem na minha vida. Uma vez tive um treinador que me mandou marcar o Alves, no Bessa, mesmo que ele fosse à casa de banho, é verdade, mas eu nunca mandei. Aliás, nem era o William que teria de o fazer".
As críticas ao desempenho com a Suíça
"Se detetares ruído, então tens de dar conforto. É claro que um 4x3x3 é muito mais fácil; eu conhecia os meus riscos. Assim como é mais fácil com 4x4x2 clássico. A questão é como vais resolver os problemas do jogo."
"Se um treinador usar o ruído ou a contestação no balneário é muito mau, porque vai baralhar completamente a cabeça dos jogadores"
Bruno Fernandes vs De Jong
"Eles jogavam com dois médios e faziam sempre a mesma coisa. O De Jong baixava para receber a bola e sair na primeira fase de construção e eles invertiam o triângulo do meio-campo. Disse aos meus jogadores que íamos jogar 1x2, o William à esquerda o Bruno Fernandes à direita. O De Jong jogou sempre à esquerda [do ponto de vista da Holanda], só pontualmente jogou à direita. Disse ao Bruno: "Deixa-te estar por ali, não te aproximes dele, mas quando o jogo começar a andar, abafa-o, porque se o abafares e roubares a bola ficas numa posição muito favorável para chutares à baliza, que é uma arma fortíssima tua."
Muito bons mas presunçosos
"Sempre que eram pressionados e perdiam a bola, os médios da Holanda tinham grandes problemas, porque subiam demasiado cedo. Eram muito presunçosos. São grandes jogadores, fortíssimos no um contra um, mas presunçosos, porque têm grandes dificuldades nas costas. Sempre disse aos jogadores: deixem-nos sair, mas depois abafem-nos."