PERFIL - Saiba mais sobre uma figura de culto do futebol argentino.
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Falecido na semana passada, Tomás Carlovich era uma figura de culto do futebol argentino cujo talento nunca foi visto na televisão. Diego Maradona, Jose Pekerman, Marcelo Bielsa, Cesar Luis Menotti ou Jorge Valdano, entre tantos outros, continuam a alimentar a lenda com relatos que despertam o lado romântico dos adeptos
Tomás Carlovich e a cidade de Rosario eram um só. Quando o antigo craque saía à rua, os seus fãs, dos oito aos oitenta, buzinavam à sua passagem e faziam questão de lhe pagar um café só para ouvir as suas histórias. Foi num dia como tantos outros que "El Trinche" foi covardemente agredido por marginais que lhe queriam roubar a bicicleta. As agressões levaram-no ao hospital e, poucos dias depois, à morte. As buzinas calaram-se, mas, dos Andes à pampa, o nome da lenda foi reavivado como um incêndio ateado a gasolina. Diego Maradona, que o conheceu pessoalmente no ano passado, chamou-o de "O Maior", Jose Pekerman não hesitou em considerá-lo como o melhor que viu jogar e Marcelo Bielsa organizava a sua agenda para o poder ver ao vivo todos os sábados. Mas afinal quem era o craque lendário cujo talento nunca "entrou" pela televisão de ninguém?
Nascido em Rosario em 1946, Tomás Felipe Carlovich, filho de um emigrante jugoslavo, mostrou pormenores de craque desde muito cedo. Fiel à fama da cidade-natal, que deu à luz alguns dos craques mais hábeis da Argentina, entre eles Messi, o miúdo mostrava uma habilidade com a bola que desafiava as leis da física. Lento, mas de técnica apurada, "El Trinche" ditava o ritmo de jogo das suas equipas ao mesmo tempo que humilhava os adversários com "cabritos" e fintas de corpo que despertavam a loucura nas bancadas. Em algumas partidas chegou a sentar-se em cima da bola antes de avançar para uma finta que se tornou a sua imagem de marca: o duplo túnel ao mesmo adversário. Hábil e elegante, Carlovich era o alimento dos românticos num futebol argentino que, entre as décadas de 1960 e 1970, foi varrido pela ditadura da força física e da correria desenfreada.
O insolente Carlovich passou por vários clubes de segunda linha, mas foi ao Central Córdoba que entregou o seu coração. Essa paixão assolapada e devidamente correspondida afastou-o de palcos mais consentâneos ao seu talento. Contudo era no universo de estádios acanhados e de relvados enlameados que El Trinche se sentia em casa, repetindo, não poucas vezes, que jogar no Central era como jogar no Real Madrid. Por ali tinha os amigos de sempre e um estatuto que lhe permitia dormir até tarde e pescar quando bem entendesse. O submundo de Rosario falava de uma predileção do craque por bares e pela noite, mas o próprio negou que tivesse uma relação com a bebida, confessando, porém, que não podia dizer o mesmo em relação às mulheres. Profissionalismo, compromisso e sacrifício eram conceitos distantes que o limitaram a apenas uma mão cheia de jogos na primeira divisão.
Os mais céticos afirmam que a nostalgia de um futebol mais puro e menos mercantilizado poderá ter fomentado memórias amplificadas do talento de Carlovich, que se espalharam boca a boca e em raríssimos artigos de jornal. No entanto, na noite de 17 de abril de 1974, o craque aproveitou o palco mais mediático a que teve acesso para fazer jus à sua fama. Convocado para um combinado de Rosario que iria testar a seleção da Argentina antes do Mundial da Alemanha, El Trinche pintou a manta e foi o destaque de uma equipa que deu um monumental baile à albiceleste. O 3-1 final foi lisonjeiro para os comandados de Vladislao Cap que, rezam as crónicas, chegou a pedir "calma" aos rosarinos para evitar uma humilhação ainda maior. Quatro anos mais tarde, Cesar Luis Menotti estava determinado em testar Carlovich com vista ao Mundial'1978, onde a Argentina se sagrou campeã em casa, mas, o craque do Central nunca apareceu no estágio para o qual foi convocado por ter parado no caminho para... pescar.
Até ao fim da sua carreira, em 1986, El Trinche chegou a ser sondado pelo Cosmos de um tal de Pelé que, segundo a história contada pelo argentino nas ruas de Rosario, terá vetado a sua contratação com receio de ficar em segundo plano. A sua vida inspirou um documentário e uma peça de teatro, que andou em digressão pela Europa. A despedida do craque ocorreu no relvado do Gabino Sosa, casa do Central. Nas bancadas, um misto de tristeza e revolta pela forma como o craque partiu. Restam, agora, as memórias e o pedido em uníssono que já é "trend topic" nas redes sociais: #JusticiaParaElTrinche.