DESPORTO EM TEMPO DE GUERRA - Formando na Juventude Hitleriana, depois paraquedista capturado pelos aliados e prisioneiro de guerra em Inglaterra, o alemão deixou o passado nazi e tornou-se uma lenda do Manchester City, cuja baliza protegeu como ninguém, conquistando uma Taça de Inglaterra com o pescoço fraturado. Esta é a história inigualável de Bert Trautmann.
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Bert Trautmann já sabia qual seria a primeira pergunta a cada vez que o interpelavam para uma entrevista. "É sobre o meu pescoço, não é? Isso é o que menos importa em mim...", dizia quase sempre aos jornalistas o antigo paraquedista da Luftwaffe, o ex-craque da baliza do Manchester City, que viveu mil aventuras num percurso de vida fascinante.
Bert Trautmann - nome que o futebol e a Inglaterra deram a Bernhard Trautmann -, foi um atleta estupendo, um ariano-modelo, um soldado nazi convicto tornado prisioneiro de guerra, um lavrador que o futebol recuperou em território outrora inimigo, uma alma redimida que enterrou o preconceito, um guarda-redes heróico e, no final da vida, um homem pacato que viajou por países do terceiro mundo, até morrer placidamente no sul de Espanha. Trautmann tinha razão: o pescoço que fraturou numa épica final da Taça de Inglaterra da qual recusou sair de campo (frente ao Birmingham City, em 1956) foi mesmo o menos importante de uma vida cheia que nem a guerra foi capaz de comprometer.
O guardião formado na Juventude Hitleriana
Natural de Bremen, Bert era um caso invulgar, multidisciplinar e prodigioso de apetência desportiva. Ainda adolescente, recebeu das mãos do então presidente alemão Paul von Hindenburg um prémio por excelência atlética. Hitler (de)formou depois o resto daquele e de tantos outros jovens. "Eu não tinha mente própria. O regime nazi não me permitiu tê-la", explicaria Trautmann, muitos anos depois de aderir à Jugenvolk, organização precursora da Juventude Hitleriana, da qual Bert foi excelso membro. Com o eclodir da Segunda Guerra Mundial, passou rapidamente de aprendiz de mecânico para operador de rádio e depois integrou o corpo paraquedista da força área germânica, operando a partir de Spandau, na Polónia. Após integrar o exército que fracassadamente tentou invadir a União Soviética pela Ucrânia, Trautmann começou a ser invadido pela própria consciência. "Fui treinado para não olhar o inimigo como uma pessoa. Mais tarde, ao vê-lo capturado, aprisionado, a chorar, chamando pelo pai e pela mãe, aí finalmente olhei para ele como uma pessoa", contou Trautmann numa entrevista ao "Observer". Depois de ver a morte de perto na frente russa e também em França, o jovem de Bremen foi capturado por uma patrulha norte-americana. Julgava que seria fuzilado logo ali, mas acabou enclausurado em Oostende (Bélgica) e levado depois para Inglaterra, onde foi interrogado e classificado com Prisioneiro C, o que significava que era mais do que soldado: era um nazi convicto, dada a doutrina recebida desde a pré-adolescência.
Detido, Trautmann passou por vários campos para prisioneiros de guerra, até ficar na região de Lancashire, na prisão de Ashton-in-Makerfield. Ali participou em vários desafios de prisioneiros, mas nem jogava à baliza - Bert só por acaso foi parar ao posto de guarda-redes. Libertado em 1948, envergonhado pelos crimes de guerra cometidos por um regime nazi que renegou, o antigo paraquedista decidiu lavar a alma e rejeitou voltar ao seu país. Ficou-se por Inglaterra e fez-se a uma vida nova. O nazi arrependido trabalhava como agricultor e fazia uma perninha pelos amadores do St. Helen's Town, até que passou definitivamente de Bernhard a Bert ao ser topado pelo Manchester City, que o contratou em outubro de 1949.
De porco nazi a herói azul
O primeiro adversário de Trautmann na turma azul de Manchester não foi uma equipa: foi o preconceito. Com a ferida da guerra ainda aberta e a verter sangue, mais de 20 mil pessoas organizaram um protesto contra a aquisição de um antigo soldado nazi. A comunidade judaica, influente em Manchester, também se insurgiu, mas o rabi local colocou gelo na situação. É que Trautmann além de visceralmente indesejado, iria substituir ninguém menos do que Frank Swift, um herói dos blues e da seleção inglesa, o qual acabaria por falecer tragicamente em Munique, no desastre aéreo de 1958, quando acompanhava o rival Manchester United enquanto jornalista.
O talento de Trautmann entre os postes fez o resto, mas a aceitação teve dores de crescimento. Na primeira visita a Londres, no campo do Fulham, em Craven Cottage, Trautmann ouviu todos os nomes, mas os mais frequentes foram "porco", "nazi" e "kraut" (termo depreciativo para alemães). Trautmann encaixou, mas sentiu-se afetado. Pouco depois, "engoliu" sete golos do Derby County, mas deu a volta por cima e a cruzar os ares em estilo. Ao cabo de alguns meses e grandes exibições, já tinha o público convencido, enrolado nos dedos das suas mãos seguras.
Valente e felino no campo, afável fora dele e reconhecido até pelos adeptos rivais, o alemão teve a sua mais celebrada exibição em 1956, quando fraturou o pescoço na final da Taça de Inglaterra, um episódio que faz parte do folclore da célebre competição. Bravo em cada osso do seu esqueleto, Bert voou temerário aos pés do adversário Peter Murphy, que inadvertidamente colidiu com o seu joelho no pescoço do guardião. Traumatizado, Bert continuou em campo e os blues venceram por 3-1, vingando a derrota para o Newcastle na final da época anterior. Com dores atrozes, Trautmann submeteu-se depois a um raio-x: o pescoço estava quebrado e o guardião correra em campo o risco de ficar paralisado. O episódio elevou-o ao panteão dos heróis e o germânico continuou por mais sete anos a proteger as redes dos citizens, até se retirar. Matt Busby, que fizera nome a jogar no City, mas que se celebrizou como manager do rival United, avisava os seus jogadores para nunca fitarem Bert nos olhos quando lhe marcavam um penálti. "Olhem que ele lê-vos os pensamentos", recomendava Busby, ciente de que defender pontapés de castigo máximo era uma especialidade servida a onze metros pelo alemão. O lendário Lev Yashin também considerava Trautmann um dos melhores do mundo entre os postes.
Entretanto, Bert casara com uma inglesa e trabalhava em part-time numa oficina de automóveis. Recusou sempre ser internacional pela Alemanha e ainda voltou a ter nova provação na vida, ao perder um filho, John, de apenas cinco anos. Nem esse golpe tremendo impediu o germânico de voltar a competir. Ganhou o prémio de melhor jogador em Inglaterra atribuído pelos Football Writers - foi o primeiro guarda-redes a merecer tal distinção - e dedicou-se ao treino, embora por pouco tempo.
Muito mais do que um pescoço partido
De pazes feitas com a sua Alemanha (então dividida), Bert foi utilizado pelo governo federal alemão para treinar em países subdesenvolvidos africanos, levando o seu conhecimento futebolístico enciclopédico à Tanzânia, à Birmânia, ao Iémen e à Libéria. Mais tarde, Bert recebeu a Ordem de Mérito da República Federal Alemã (1997) e a Ordem do Império Britânico (2004) - a Cruz de Ferro que tinha ganho ao serviço do exército nazi, deitou-a fora. A sua lenda em Inglaterra é imortal: Bert tem uma estátua colocada na entrada principal do Etihad Stadium e há um filme sobre a sua vida, "The Keeper", onde é interpretado pelo ator alemão David Kross.
Antes de a 19 de julho de 2013 fechar os olhos pela última vez em La Llosa, na costa valenciana, Bert contou que na única vez em que falou com Isabel II, Rainha de Inglaterra, esta lhe perguntou se ele estava melhor do pescoço.
Sua Alteza também não sabia que isso era, definitivamente, o menos importante na fantástica vida de Bert Trautmann.