Num segundo ano da pandemia, o leão corre para o título, tal como no século XX, em que se sagrou campeão durante a gripe espanhola.
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Há 102 anos, uma pandemia passava de um ano para o outro num mundo doente. Então, como agora, Portugal agonizava com a propagação de um vírus - a chamada gripe espanhola. Então, como agora, a população passava por privações, medidas sanitárias acentuadas, com morte e incerteza a preencher os dias. Então, como agora, o futebol era uma fonte de distração e paixão. Então, como agora..., o Sporting lançava-se na direção de uma provável conquista.
Em 1919, os leões, cujo fundador José Alvalade tinha falecido meses antes vitimado pela "pneumónica", foram eventuais vencedores do maior título ao alcance: o Campeonato Regional da Associação de Futebol de Lisboa (AFL).
Em 2021, os verdes e brancos da camisola listada seguem a bom ritmo na perseguição "ao" título que lhe escapa desde 2002: o de campeão da I Liga. Mas há muito por contar sobre a aventura desses leões do passado século e os pontos comuns com o esquadrão de Rúben Amorim. É que, já na altura, houve craques, broncas, casos, protestos, atrasos, decisões na secretaria e rivalidades azedas. Enfim, tudo aquilo a que continuamos hoje a ter direito num futebol que já no início do passado século era... bem português.
Voltemos a 1919, ou antes, à época 1918/19. O Sporting tentava conquistar o seu segundo título maior num Portugal pré-histórico ao nível de competição - as únicas provas relevantes eram os campeonatos regionais, principalmente, claro está, os de Lisboa e Porto - o Campeonato de Portugal, primeira competição disputada a nível nacional, só começaria em 1921/22. Os leões eram capitaneados por Francisco Stromp e tinham o craque dos craques de então: Artur José Pereira. A campanha começou a 29 de dezembro de 1918 e só terminou a 20 de julho de 1919, com... dez jogos. A meta do leão era acabar com o "tri" do Benfica, o favorito a vencer a prova. Essa edição do Campeonato de Lisboa contou, de resto, com a estreia do V. Setúbal (então filiado na AF Lisboa), que seria a sensação do torneio.
Os duelos com o Benfica dentro e fora de campo já se tornavam encarniçados (ler peça à parte) e tudo começou mal para o Sporting, que perdeu dois dos três primeiros desafios (ante os encarnados e os vitorianos, por 3-1 e 2-1, respetivamente). Ninguém dava nada por aquela equipa, assim como poucos davam pela de 2020/21. Mas o leão surpreendeu ao reerguer-se e a só somar vitórias até final..., não sem alguns solavancos e salsifrés pelo caminho.
Era uma vez uma expulsão fantasma
Pela primeira vez o título disputou-se numa "finalíssima" à melhor de três jogos, mas os verdes e brancos ganharam os dois primeiros (1-0 e 2-1) e acabaram logo com a conversa... ou quase. É que os dérbis já eram dérbis. Em tudo. O Benfica tinha protestado na AFL um jogo contra o V. Setúbal, contestando um golo que lhe fora invalidado. A espera pela decisão da AFL arrastou-se (faz lembrar alguma coisa?...) e só surgiu em julho, já depois do campeonato terminar. Mas houve mais: os encarnados interpuseram nova reclamação após a segunda e fatal derrota, por alegada utilização irregular de Jusa, o "striker" do Sporting - uma espécie de caso Palhinha da altura.
O Benfica alegava que Jusa teria continuado em campo após ser expulso (não havia cartões e era tudo de boca, claro está) e, ao sentir que a AFL poderia ser sensível aos protestos do rival, o Sporting fez ameaças. Finalmente, no final do verão de 1919, a "sentença" da AFL seria desfavorável aos encarnados e o título finalmente atribuído sem mais discussão ao leão, que nem festejou a bom festejar. A doença ainda pairava.
PROTAGONISTAS
JUSA
O "Palhinha do Século XX"
José Rodrigues, o Jusa, nasceu no Funchal em 1894 e foi um avançado-centro forte e impetuoso. Era um terror nas áreas e nas piscinas, pois também praticava natação e polo aquático. Vindo do Marítimo, atuou nos leões entre 1918 e 1921. No Campeonato de Lisboa de 1918/19, Jusa foi centro da polémica ao ser expulso pelo juiz num dérbi decisivo, mas depois readmitido em campo por recusar sair, segundo a alegação encarnada - o jogador leonino disse nunca ter ouvido tal ordem. O Benfica perdeu a partida e a prova, protestou junto da AFL e a atribuição do título ficou pendurada. Jusa, esse ficou célebre. Depois fez-se treinador, andou pelo Ribatejo e faleceu em Santarém de cirrose hepática, no ano de 1953.
FRANCISCO STROMP
O segundo título do eterno capitão
Durante as suas primeiras décadas de vida do Sporting, Francisco Stromp foi mais que figura de proa do clube: para muitos, ele "era" o Sporting. Sócio-fundador, jogador, treinador, secretário, dirigente, o médio/avançado deixou tudo pelo seu amor ao clube, incluindo um curso de engenharia e a vontade de formar família. Francisco Stromp provinha de uma família ilustre de Lisboa, cresceu no Lumiar e devotou a sua vida desportiva à causa leonina. O título de 1919 foi o seu segundo Campeonato de Lisboa e a sua influência revelou-se vital para que a AFL não levasse a taça desse ano para o rival. Acometido de sífilis (então incurável) colocou termo à vida em Sete Rios, a 1 de julho de 1930, no 24º aniversário do Sporting.
ARTUR JOSÉ PEREIRA
O craque que... "foi à merda"
Qualquer almanaque do jogo bonito o diz: Artur José Pereira foi o primeiro jogador-estrela do futebol português. No início do século XX, era o maior craque e, seguramente, o mais cobiçado. Protagonizou até a primeira "transferência-sensação". Era rebelde, livre. Nascido em Belém, ao tempo um bairro pobre, Artur José Pereira iniciou-se no União Belenense, seguiu para o Grupo Sport Lisboa - que daria origem ao Sport Lisboa e Benfica - e vingou. Desavindo com os encarnados, mudou-se com escândalo para o Sporting, onde continuou a vencer. Médio virtuoso, Artur José Pereira queria voltar a Belém. Logo após o tal título de 1919, pediu a Francisco Stromp para sair e este, irritado, mandou dizer-lhe: "O Artur que vá à merda e funde lá o tal clube em Belém!" Artur "foi" e fundou o Belenenses.
O dérbi que sempre usou faca nos dentes
Boa parte do século passado desportivo foi preenchido pela rivalidade entre leões e águias e em 1919 já se marcava a fogo a tensão nos duelos dentro e fora de campo entre os principais emblemas lisboetas, que ao tempo tinham as mais numerosas falanges de adeptos no país e colónias de então. Além das questões de secretaria, a coisa já fervia no interior das quatro linhas.
Nesse Campeonato de Lisboa de 1918/19, o dérbi já usava faca nos dentes, era marcado por violência física e verbal e os árbitros, no dizer do povo, "já faziam como o Mazzola e davam à sola". No segundo encontro da finalíssima entre Sporting e Benfica, no Campo Grande, houve quase luta livre dentro de campo. Além de os leões se queixarem de tentativas de agressões a dirigentes seus, os jogadores das duas equipas interessaram-se mais pelas tíbias uns dos outros do que pela bola e, muita agressividade e três expulsões depois, o duelo foi considerado um embaraço para a divulgação do desporto.
Mas houve também casos caricatos. No duelo da primeira mão, o árbitro Luís Plácido de Sousa recusou comparecer por temer um ambiente hostil e foi rendido em cima da hora da partida por Carlos Pinto. De resto, os leões começaram esse encontro a jogar com dez - a vedeta Artur José Pereira atrasou-se e só entrou na segunda parte. Mesmo assim os leões venceram 1-0.
Para acabar, e perante a ameaça de perder o campeonato na secretaria após os tais protestos do rival, o Sporting ameaçou entregar a taça ao Benfica e passar a jogar só contra clubes estrangeiros, sendo que, pelo atraso verificado na atribuição final do título, rezam as crónicas não foram disputados os habituais encontros amigáveis entre equipas de Lisboa e do Porto, além da Taça de Honra (o outro troféu regional) e da Taça dos Mutilados de Guerra.
Como era o país há 102 anos
• Portugal ainda lutava contra a gripe espanhola, que por cá matou mais de 60 mil pessoas. Os primeiros casos tinham-se verificado em Vila Viçosa.
• O país debatia-se com uma grave crise política, após ao assassinato, a 14 de dezembro de 1918, do Presidente da República Sidónio Pais.
• Um golpe militar liderado por Paiva Couceiro, de inspiração anti-republicana, instaurou a chamada Monarquia do Norte e o Porto foi proclamado capital do país. Durou 25 dias.
• Deflagrou um rápida guerra civil entre republicanos e monárquicos, que terminou na Cidade Invicta a 13 de fevereiro. Foi restaurada de novo a República. Lisboa voltou a ser a capital.
• O poder local foi diluído, com o governo a atuar em ditadura e a ser concedido ao Presidente da República a prerrogativa de dissolver o parlamento.
• As greves eram prática frequente em vários setores de atividade e o crime cresceu, com incêndios e roubos nos grandes centros urbanos.
• António José de Almeida tomou posse como Presidente da República de Portugal. Desempenharia o cargo por quatro anos.
• Portugal registava 37 138 emigrantes, números que continuaram a subir nos três anos seguintes.
• A taxa de mortalidade infantil estabelecia-se em 41,8 por cada mil habitantes.
• A população do país era de cerca de 6 milhões, sendo a urbana de 1, 213 milhões - 484 mil em Lisboa e 202 mil no Porto.
• A pobreza era generalizada e a taxa de analfabetismo em 1919 fixava-se nos 70,5%.
• A Cozinha Económica, ou Sopa dos Pobres, era subsidiada pelo Estado e por filantropos. Quem utilizava este recurso usava senhas. Um jantar completo custava 90 réis (nove centavos).