"Pedroto e Pinto da Costa num banco, sujeitos a caírem, e eu confortável numa cadeira?"
José Neto explica a O JOGO como nasceu a observação e recolha estatística, que hoje é obtida facilmente pela tecnologia, mas que há 30 anos era feita com papel, caneta e muita atenção. Exemplares dos mapas são o "Objeto do Mês" no Museu do FC Porto. O então aluno universitário inspirou-se no basquetebol para ajudar José Maria Pedroto, que quis acrescentar parâmetros.
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Termina esta terça-feira a exposição do "Objeto do Mês" do Museu do FC Porto, que retrata a recolha estatística levada a cabo pelo professor José Neto em 1984. Parece simples, à partida, mas foi o início de algo que todos nos habituámos a ver: jogos de futebol descritos em números, percentagens e médias captados por regimentos de análise e observação. Só que, naquela altura, a tecnologia de hoje era coisa de ficção científica.
Papel, caneta, régua, esquadro, cronómetro e uma cadeira à beira do relvado chegaram para ser-se pioneiro e dar asas à visão de José Maria Pedroto, como José Neto conta a O JOGO. "Estava lançadíssimo no seu tempo. Tenho a certeza que hoje ainda daria cartas", afirma.
O ainda finalista do curso de Educação Física e Desporto começou por deixar o "Mestre" intrigado quando, em 1981, no final de uma palestra, lhe perguntou qual era a importância do jogo para o treino. Pedroto, na altura a treinar o V. Guimarães, convidou-o para uma conversa e o resto é história.
"Quis fazer-lhe uma surpresa. Vi uma ficha da organização do basquete com o Jorge Araújo e pensei em adaptar ao futebol. Levei um mapa de um metro para Guimarães", recorda o professor. "Passes, passes errados, na zona defensiva, intermédia e atacante; remates, na grande área, pequena ou fora. Mas para o senhor Pedroto era pouco. Tinha de ter áreas de remate, A1, A2... 25 áreas. Com preparação, sem preparação, de cabeça. Ataques, lado direito, centro e esquerda; quantos davam origem a remate e quantos remates dão golo", enumera.
Neto achava que "ia levar um arranque" de Pedroto, mas o técnico "mandou chamar os meninos" e o mapa ficou ainda maior. "Posse de bola, porque ele dizia "quem tem a bola, tem o jogo e quem domina a bola domina o jogo". Então, toca a andar com dois cronómetros. "Atenção que o contra-ataque é muito importante. Tem de ser rápido e consequente. Por quantos jogadores passa? Quanto tempo demora? Qual é o resultado? Quantos passes positivos e desarmes faz aquele jogador? E depois do desarme? Fica a olhar para as estrelas ou dá consequência à jogada?" Começou a ganhar uma dimensão de investigação pura e objetiva", relembra José Neto, convicto de que "perceber de estatística não significa perceber de futebol".
Mas o "Mestre" sabia muito disso e um dia deixou o seu assistente eufórico com uma simples frase. ""Para o ano, vai comigo para o FC Porto"", relembra Neto. "Até fui dar uns piões num campo de futebol em Vizela", garante, com uma certeza. "Os dados têm de ser fáceis de explicar aos jogadores. Se ele souber o porquê das situações, fará muito melhor. Mas tudo isto é teoria do senhor Pedroto", vinca o pai da análise e observação.
Da média de Gomes a Rui Barros na ponta da caneta
Ter cada passo anotado por José Neto para avaliação não incomodou os jogadores, bem pelo contrário.
"Receberam muito bem, ficavam curiosos. Recordo-me que o Lima Pereira vinha sempre questionar-me, queria ver os rankings dele. Eles viam que estava ali como um elemento de ajuda, não ia acusar ninguém. "Estiveste bem, ganhámos, mas podia ser melhor", dizia-lhes. O jogo parava de 180 a 220 vezes e eu com dois cronómetros e uma caneta. No fim do jogo eram umas dores de cabeça... Adormecia quase sempre na viagem de regresso. Depois comecei a usar um gravador e foi mais fácil", relata Neto, num misto de entusiasmo e nostalgia, como quando se evocam os registos do eterno Fernando Gomes.
"Tinha 4,7 remates/1 golo em três zonas da área: A2, A4 e A6; 50% com preparação, 25% sem preparação, 25% de cabeça. Na segunda Bota de Ouro eram 3,7 remates/1 golo, exatamente nas mesmas zonas", atira o professor, sem hesitar.
Pedroto partiu em 1985, mas José Neto continuou a fotografar a estatística com papel e caneta. "Ivic pediu-me para ver onde andava o Rui Barros quando o FC Porto não tinha a bola, quantos quilómetros fazia. Aí já não havia observação de jogo, era o jogador na ponta de esferográfica. Se era rápido, fazia em linha fina. Se era mais lento, fazia com um ponto. Se era a caminhar, fazia com dois pontos" detalha.
CURIOSIDADES
Às vezes a emoção impedia o trabalho
Sem repetições à mão, era precisos níveis de atenção elevadíssimos e imunes à emoção, o que nem sempre acontecia. "Houve jogos em que não consegui. Disse "senhor Pedroto, peço desculpa, os últimos dez minutos... Nós não conseguíamos marcar, era o polícia atrás a berrar e com o boné pelo ar, era o senhor a calcar um cigarro, era tudo a tremer, nós a precisar de ganhar e eu emocionei-me com o jogo". Deu-me um abraço e disse: "Obrigado pela sua fidelidade"", revela José Neto.
Pedroto mandava avaliar a Imprensa
Junto aos mapas com os dados da equipa e jogadores estão excertos de crónicas dos jornais da época, com uma nota. "Você [José Neto] vê o jogo de uma forma objetiva, dê-lhe uma nota de 0 a 5. Sublinhe a azul a verdade, a vermelho a mentira e a verde o que é discutível", pedia o malogrado treinador.
Ficou surpreendido por ter uma cadeira
Neto assumiu que se sentia tão agradecido pela oportunidade que até uma cadeira à beira do relvado lhe parecia um luxo. "Então, Pedroto e Pinto da Costa num banco de correr, sujeitos a caírem para trás, e eu confortável numa cadeira?", recorda o professor. Eram ordens de Pedroto "para pôr a pasta".
Recuperação física abriu outra valência
Para José Neto, "o FC Porto foi a grande universidade". "Estudei como nunca na vida." Além da estatística, o professor era uma ponte entre a equipa técnica e médica, colaborando na recuperação de lesões. "Como posso pegar no Jaime Magalhães com um pubalgia e, num mês e 12 dias, ele estar a jogar? Como é que um jogador com lesão nos ligamentos cruzados pode voltar em quatro meses e sete dias? Nunca tive recidivas e um dos grandes troféus é esse. Quando um jogador está lesionado é quando lhe conhecemos a alma", explicou o agora professor.