A preparar o futuro, o guarda-redes brasileiro Rafael Bracali leva 14 épocas em Portugal, com as camisolas do Nacional, FC Porto, Arouca e Boavista
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Quando entra em campo, Bracali já só pensa no jogo que aí vem. Não existe mais nada além da competição. Ou não existia, até, nos últimos tempos, essa rede mental que o acompanha na contagem decrescente para o pontapé de saída ser furada pelas vozes infantis dos miúdos que leva pela mão.
Armando Bracalli viu-o jogar, aos 15 anos, e obrigou-o a escolher: guarda-redes ou outra profissão.
"Lembras-te mim?", perguntam, encantados por estarem ali e ao lado do treinador-adjunto estagiário dos Sub-11 do Boavista. "Lembro, claro", sossega-os, e a concentração à prova do ambiente mais escaldante descobre-se a sorrir àquela outra equipa dele. Ricardo Costa, Mateus e Edu Machado hão-de passar pelo mesmo.
Tal como o guarda-redes brasileiro, também eles escolheram as camadas jovens do Bessa para fazerem o estágio do curso básico de treinador. "É gratificante. Mesmo sendo cansativo. Às vezes, jogamos na sexta-feira à noite e, no sábado de manhã, cedo, estamos lá com eles. Mas, chegamos ali e é uma alegria", conta.
Bracali está com 38 anos, a idade com que o pai, Armando Bracalli, trocou a baliza pelo treino de guarda-redes. Independentemente da idade, ele imagina-se a fazer um caminho assim, daí o curso. "Quanto mais pudermos antecipar o nosso futuro, melhor", explica quem só se vê na baliza. "Em princípio, seguirei pela minha paixão, que é a baliza. Preparo-me para ser treinador de guarda-redes e o curso é mais uma ferramenta" a juntar à "óbvia experiência de muitos anos de futebol" e ainda à licenciatura em Educação Física que completou antes de se mudar para Portugal, já lá vão 14 temporadas.
Foi a olhar para o futuro que o presente ganhou ainda mais treinos, a juntar aos do plantel principal: segundas e quintas-feiras, no Bessa, e jogos aos sábados de manhã. O estágio prevê que desempenhe experimente todas as funções na equipa técnica. "Há dias em que aproveito para ficar com os guarda-redes, não só da minha categoria. Não é difícil imaginar como se sentem as crianças ao ter ali um atleta profissional e, ainda por cima, um que vale pontos ao Boavista. "É mais um estímulo para eles", a juntar ao "sonho de serem jogadores".
Bracali lembra-se da sensação. "Quando era miúdo, também gostava de treinar na equipa sénior e ver os guarda-redes da equipa profissional, acompanhá-los, ver o que faziam, saber o dia-a-dia deles", recorda, e valoriza o papel que tem neste estágio: "Nós somos referências, temos de comportar-nos como tal. Estão numa fase importante da vida, não só na formação, mas escolar e enquanto seres humanos. Precisam de princípios, de carácter e nós, além de sermos profissionais, temos de ser boas pessoas na nossa vida para que eles saibam que não é só futebol, há coisas muito mais importantes".
Desde cedo viu o lado difícil de ser profissional e a sensatez do pai levou-o à baliza
Filho de guarda-redes, Rafael Bracali não tinha pensado seguir os passos do pai. Na verdade, queria até o oposto. "Não. Queria marcar golos", ri. Até que houve um aniversário em que recebeu um equipamento de guardião, mas, quando o estreou, a "jogar com os amigos", Armando Bracalli, hoje com 67 anos, arrependeu-se. "Sofri um golo e comecei a chorar. Ele viu, desceu lá do sétimo ou oitavo andar, pegou-me pela mão e disse: "Nunca mais vais à baliza. Se for para chorar, não quero ninguém na baliza"".
Em casa, Bracali aprendeu com o pai a conviver com o lado privado da vida dos futebolistas profissionais. "Via que não era fácil", percebia quando "chegava calado, não queria falar, triste por uma derrota ou por um lance infeliz". "Muita gente pensa que é como se tirássemos a pele, deixássemos lá e viéssemos para casa como se nada tivesse acontecido. E não é."
Bracali cresceu a sonhar marcar golos, até que o pai o acordou para a realidade e ofereceu-lhe uma escolha: "Um dia, viu-me jogar e disse-me que não tinha características de jogador de campo. A única opção era ir à baliza e continuar com o sonho de jogar futebol ou só estudar e escolher outra profissão". Quando já era treinador de guarda-redes, o pai , que cumpriu tod a carreira no Brasil, em clubes como Atlético Paranaense ou Remo, ofereceu-se para o ajudar: dois meses de preparação e depois ia "fazer uma avaliação nos sub-17" do Paulista de Jundiaí. O jovem Bracali ainda demorou "um mês" até ganhar coragem.
"Sofri um golo e comecei a chorar. O meu pai viu e disse: "Se for para chorar, não quero ninguém na baliza"
"Tinha vergonha, nunca tinha calçados umas luvas, a não ser no bairro, e ia ter de me misturar com os outros guarda-redes, ficava um pouco sem graça". Contudo, quando deu esse passo, descobriu-se guarda-redes, "a paixão ficou", e a gratidão também, hoje misturada com uma lição importante que Bracali treinador pode transmitir aos mais novos: "Ainda bem que tinha alguém em casa para me ajudar a ver coisas que nós, com 15, 16 anos, não vamos conseguir ver."
Baliza deixa os miúdos curiosos
Com Bracali na equipa técnica, é possível que surjam muitos candidatos a guarda-redes nos sub-11 do Boavista. O brasileiro admite essa "motivação extra", mas lembra que "o panorama mudou" e a baliza está mais apetecível, em parte, devido ao "trabalho específico" desenvolvido por treinadores de guarda-redes.
Os exercícios para os donos das balizas são cada vez mais variados e completos. "Acaba por deixá-los curiosos, com vontade de estar ali, naquele treino especial", explica o guarda-redes axadrezado.
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