"FC Porto é favorito, mas para aqueles jogadores um jogo europeu é lutar pelo país"
ENTREVISTA - Foram três épocas pontuadas por outros tantos títulos de campeão na Ucrânia. Paulo Fonseca tem mulher ucraniana e estava em Kiev quando rebentou a guerra. Ainda temeu pela vida nos primeiros dias.
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Paulo Fonseca foi conquistador de títulos no Shakhtar e construiu uma relação com o país, inclusive, através da sua mulher. Mantém-se próximo do clube de Donetsk.
Como acompanha a guerra da Ucrânia e como ainda o abalam as notícias?
-É muito forte a ligação, acompanho diariamente. A tendência das pessoas é esquecerem um bocadinho a guerra, natural para quem está longe mas para quem está tão próximo afetivamente como eu é difícil. Continuam a morrer crianças e não se vê um fim. Preocupa-me porque tenho amigos lá, que continuam a sofrer. E isso é difícil de aceitar, é um conflito sem motivo algum. Estamos sempre a lidar com injustiças que se cometem contra um povo que quer sobreviver e manter a pátria.
Sente um certo adormecimento e expectativa geral?
-Não entendo como o mundo permita que isto aconteça, pois quem agride e mata continua impune. Isto está a dar grande poder aos ditadores deste mundo, sentem que o mundo tem receio de intervir e o meu receio é que apareçam mais Putins. Valorizo a ajuda da Europa e Estados Unidos mas faz-me confusão que se mandem as armas e desenrasquem-se... Acho que o mundo pode fazer muito mais.
Não há êxitos que possam tirar o foco da paz na Ucrânia ou ajudar a apagar as imagens da sua fuga?
-É incomparável. São momentos que assistimos, pensando que só acontecem nos filmes. De repente somos nós a viver isso, em grande pânico, a tentar arranjar soluções. O que passei não é nada com o que as pessoas continuam a viver. Vejo crianças que morrem, outras que ficam órfãs.
Como acompanha os custos desportivos da guerra no futebol e que Shakhtar é este que vai defrontar o FC Porto?
-Sempre que tenho oportunidade visito-os, há muita gente ainda no Shakhtar que trabalhou comigo. Mas é um clube completamente diferente, sem o investimento que tínhamos e sem a influência dos estrangeiros que era dominante. Hoje é uma equipa composta por jovens da academia, essencialmente ucranianos. São a face de um milagre, pois é um milagre haver liga na Ucrânia. Mostra a força e tenacidade das pessoas. É algo heroico estas equipas continuarem a lutar.
É uma questão de orgulho ferido que o FC Porto enfrentará em Hamburgo?
-Eles têm sabido orgulhar a Ucrânia com os seus desempenhos, há uma força única nestes momentos e, se olharmos aos resultados do Shakhtar no pós-guerra, eles surpreenderam muita gente. Virá um documentário sobre isso. Não é o Shakhtar de outros tempos , sobreviveu por ter uma grande academia e vai dificultar muito a vida ao FC Porto, que é favorito, até por não haver fator casa. Mas atenção... para aqueles jogadores um jogo europeu é lutar pelo país e chamar a atenção do problema.
Que jogadores do seu tempo ainda destaca?
-É curioso que tinha um contacto forte com o Trubin, ainda estive com ele em Londres. Foi uma grande aposta do Benfica, não tenho dúvidas que vai ser um dos melhores guarda-redes da Europa, além de ser um excelente profissional. Mantive contacto com o Stepanenko e o Mativienko, com diretores, médicos, roupeiros. Também lá jogam muitos jovens que treinavam comigo, hoje já cobiçados.
Apesar da sua carta, o Braga negociou e vendeu mesmo o Tormena a um clube russo. Dececionado?
-Eu acho que o futebol não se pode colocar à parte do que é a guerra na Ucrânia. Se a União Europeia adota sanções contra um país agressor, se a maior parte das empresas acata as normativas, o futebol não pode ser diferente. Para mim é difícil compreender que alguém mantenha relações como se nada estivesse a passar. Custou-me particularmente ver clubes portugueses indiferentes ao problema. Gosto muito do Braga mas fiquei desiludido com esse negócio. Não muda a minha relação com o clube mas há coisas mais importantes na vida que o dinheiro.