ENTREVISTA, PARTE II - Açores é a repetição de um destino na vida de Daniel Ramos. O clube cresceu, o treinador também e a empatia faz o resto... A ideia é consolidar o Santa Clara como clube de I Liga e fazer ainda melhor
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Na época de 2016/17, Daniel Ramos esteve meia época no Santa Clara, na II Liga. Os bons resultados levaram a um convite do Marítimo, da I Liga.
Deixou uma excelente imagem no Santa Clara e só lá esteve meia época...
-A minha passagem pelo Santa Clara foi excecional. Fiz sete vitórias e um empate no tempo em que lá estive. Saí depois para o Marítimo, para a I Liga, foi uma oportunidade que surgiu, mas ficou a saudade porque houve uma grande empatia com as pessoas do Santa Clara, as relações humanas eram excelentes, são excelentes, ganhei muitos amigos lá dentro. O presidente Rui Cordeiro e o Diogo Alma [diretor desportivo] são os principais responsáveis pelo meu regresso ao Santa Clara. Ficou sempre a sensação de que um dia iríamos voltar a trabalhar juntos. Houve o convite e não podia dizer que não.
É muito importante começar uma época?
-Claro que sim, e vai ao encontro do meu desejo. Fazer parte do processo de escolhas com a estrutura, criar as dinâmicas que achamos certas, fazer uma boa pré-época, criar uma ideia de jogo desde o início, tentar melhorar o clube... O treinador tem essa possibilidade. Já fiz isso na minha primeira passagem pelo Santa Clara.
Está entusiasmado com o projeto do Santa Clara?
-Muito mesmo. O Santa Clara tem uma filosofia e uma ideia que estão muito bem alicerçadas. Sei o que eles querem e o que pretendem de mim, sei qual é o rumo do clube e o que me compete fazer. O Santa Clara quer afirmar-se como um clube de I Liga. Fez duas épocas positivas, conseguiu ficar no meio da tabela sem sobressaltos, e para quem vem da II Liga é muito bom. Agora, quer consolidar este comportamento e se possível melhorar. Passa por o clube ter melhores condições ainda. Tenho de ir ao encontro do que são os objetivos do clube, como seja valorizar os os ativos. O clube precisa de vender. Há que apostar em jogadores jovens para o clube continuara a crescer, ter capacidade para não passar por dificuldades.
Vamos ter o Santa Clara a jogar ao ataque?
-Sempre que possível. Atacar e defender faz parte do jogo e não se podem dissociar os dois processos. Atacar bem é começar a defender bem, defender bem é começar a atacar bem. Portanto, dentro desta lógica, se pudermos ter mais domínio de jogo e capacidade de fazermos golos, melhor. Temos de criar uma ideia de jogo que proporcione bons espetáculos, bons resultados e que valorize toda a gente.
Ser treinador de um clube ilhéu é um trabalho extra. Como é que se gere as questões das viagens, por exemplo?...
-É a quarta vez que trabalho nas ilhas, tenho essa experiência. É preciso ter alguma sensibilidade, sim. A quem tem a família no continente há que dar o tempo máximo de descanso quando vamos jogar ao continente. Em vez de regressarmos no imediato após o jogo, regressar só no dia do treino. Temos de dar uns mimos aos jogadores. Há um desgaste quinzenal e não é uma logística fácil. Há que encontrar dinâmicas para reduzir, por exemplo, o tempo de espera nos aeroportos. O ideal era um charter, mas não é possível.
Já teve de fazer de psicólogo, por exemplo, com um jogador que tenha medo de viajar de avião?
-Tantas vezes! Um treinador é um pai, um amigo, é confidente. O treinador ou os treinadores, porque os jogadores por vezes sentem-se mais confortáveis em conversar com os restantes elementos da equipa técnica, e a minha equipa técnica tem total liberdade para desempenhar essa missão.
É preciso alguma preparação especial para esse desempenho?
-Investi muito na área de perceber o perfil do atleta, porque é muito importante, com um amigo especialista, Sérgio Almeida, que me disse que a primeira vitória é interior. Se conseguirmos perceber o perfil do jogador que temos pela frente - as coisas que ele gosta, se gosta mais ou menos de conversar, as suas expectativas, o que precisa de melhorar - conseguimos tirar um melhor rendimento dele. O jogador por vezes percebe mal o jogo e percebe-se mal a si próprio. É um trabalho gratificante. Recebo mensagens hoje de jogadores que veem em mim um amigo.
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"É mais difícil ser treinador"
Treinador subiu a pulso na carreira, mas respeita quem chega depressa a um clube grande sem ter trabalho feito. "Uma oportunidade dessas é sempre de agarrar. Também gostava"
Começou como treinador adjunto, por acidente, na III Divisão e bem se pode dizer que subiu a pulso, passando por todas as divisões. "Era futebolista, lesionei-me e fui estudar, fiz o curso de Gestão de Desporto no ISMAI. Apaixonei-me pelo treino e foram-me dando oportunidades. Comecei a gostar cada vez mais disto. Nada me foi dado de mão beijada e tenho orgulho porque fui conquistando o meu espaço."
Daniel Ramos começou nesta vida com 31 anos, depois do Vilanovense treinou Dragões Sandinenses, Chaves, Trofense, Naval, Moreirense, U. Madeira, Vizela, Famalicão (três épocas), Santa Clara, Marítimo, Rio Ave, Boavista. "Fui evoluindo, já cheguei à Liga Europa, agora quero chegar à Liga dos Campeões, hei de lá chegar um dia. Nunca pisei ninguém pelo caminho".
Hoje, chega-se à I Liga mais depressa. E a clubes grandes, como Rúben Amorim, por exemplo. Daniel Ramos comenta: "Não tenho nada contra. Acaba por ser o sistema. Há uns anos não acontecia isto, e se calhar gostava de ter essa oportunidade como alguns têm. E quem a tem só tem mesmo de a agarrar."
Daniel Ramos deixa bem claro que a qualidade de quem tem essas oportunidades "não está em causa, mas para quem fez um percurso degrau a degrau, fica estranho". "Estão a aparecer treinadores sem grandes trabalhos por trás, mas que demonstraram mérito como jogadores ou nas equipas de formação. Respeito isso."
O treinador conta que fez um investimento nele próprio ao longo dos anos, "no conhecimento do futebol, do treino. Levei umas pauladas pelo caminho, mas levantei-me sempre. Há cerca de 20 anos que sou treinador e consegui sempre levantar-me".
Há outra coisa que o orgulha: "Deixei portas abertas em todos os clubes por onde passei. Hoje, há pouca paciência com os treinadores. O futebol está a mudar, sabemos que hoje acontecem mudanças de treinadores com uma facilidade desagradável. Tem a ver com investidores e com uma mudança de paradigma no futebol-indústria."
Ao cabo deste tempo, Daniel Ramos tira uma conclusão: "Está mais difícil ser treinador em Portugal, porque não há paciência."
Um grande no horizonte
Quando começou a carreira de treinador, Daniel Ramos não imaginava que chegaria tão longe. E, agora, depois de se afirmar como treinador de I Liga, qual será o futuro?
É uma pergunta da praxe, mas ambiciona chegar a um clube grande?
-É muito fácil responder a isso. Claro que sim, é uma das minhas ambições, mas não tenho pressa. Quem vem de baixo e quer continuar a crescer só pode olhar para cima.
Não é uma coisa fácil de se conseguir...
-Não, não é, se fosse todos lá chegavam. É preciso ter uma solidez de conhecimentos importante, fazer bons trabalhos, estar bem estruturado, mas ninguém me pode tirar a ambição de chegar lá. Também é preciso paciência e nunca desistir das nossas intenções. Tenho essa ambição de treinar um clube que me dê a possibilidade de lutar por um título, em Portugal ou no estrangeiro.
Também é preciso ter um bom empresário...
-[risos] Ajuda, ajuda... Um bom empresário abre portas, influencia na altura de os clubes escolherem um treinador.
Já teve possibilidades de sair para o estrangeiro. Por que é que nunca foi?
-Já tive essa possibilidade várias vezes. Ainda agora tive... mas fiquei a pensar que olhando a esta pandemia, para onde iria? Interroguei-me se seria a melhor altura para sair. Falei com a família e achei por bem ficar, por agora.