ENTREVISTA, PARTE I - Saída do Boavista foi algo estranha, faltou uma conversa que estava prometida pelo presidente, mas o caminho agora é outro. Trata-se de um regresso aos Açores, onde Daniel Ramos é muito querido.
Corpo do artigo
Daniel Ramos, ou melhor dr. Daniel Ramos, porque o novo treinador do Santa Clara é formado em Gestão do Desporto, acaba de fazer um percurso no Boavista que lhe permitiu realizar um campeonato tranquilo.
Saiu com a certeza do dever cumprido, mas deixa escapar algumas palavras que refletem estranheza pelo facto de não lhe terem dito que não ia continuar e até por terem começado a falar na sua substituição quando a permanência nem estava garantida. Esperamos que seja um prazer para o leitor ler esta longa conversa que O JOGO teve com o vila-condense.
O Boavista alguma vez jogou segundo aquilo que você idealiza para uma equipa de futebol?
Aconteceu principalmente depois da retoma, em alguns jogos. A equipa revelou um enorme crescimento, transfigurámo-nos para muito melhor. Aproveitámos bem a paragem. Na parte inicial, quando chegámos, não conseguimos fazer o que queríamos, os resultados não ajudaram e perdeu-se a confiança. Na paragem, trabalhámos a parte mental muito bem. Os resultados tiveram de ser a prioridade.
Para si e para o grupo, a paragem acabou por ser muito boa...
- Foi mau, claro, porque estamos a falar de uma tragédia mundial, mas para o nosso trabalho acabou por ser positivo. Permitiu-nos uma pré-época, um assimilar de ideias, a equipa respondeu muito bem e foi possível mudarmos para muito melhor. Nas dez jornadas que faltavam fizemos bons jogos, com alguma intermitência, mas a maioria deles com qualidade. Não foi na plenitude o futebol com que me identifico, porque ainda havia muito para crescer... A equipa teve uma grande evolução, embora sem chegar onde queria.
Sim, fizeram grandes jogos, como com o Moreirense, e que até perderam...
-Sim, nesse jogo até dei os parabéns aos jogadores no final, porque foi daqueles jogos em que vamos para casa e chegamos à conclusão que fizemos tudo bem.
E conseguiu limpar aquela imagem que o Boavista tem para algumas pessoas, de ser uma equipa de caceteiros...
-O Boavista não pode nunca perder o facto de ser uma equipa de raça, há muitas pessoas que conectam o Boavista com algo diferente disso. Isso é que não é bom. O Boavista não pode perder o seu ADN, mas pode aliar a isso uma qualidade de jogo que pode ser melhorada. Aliás, esse foi o caminho que imaginei quando fui para o Boavista, manter o ADN e montar uma equipa organizada e com qualidade. Ter um jogo ofensivo atraente. Sabia que era um desafio difícil, porque ia romper com muito do que estava interiorizado pelo grupo.
https://d3t5avr471xfwf.cloudfront.net/2020/08/oj_daniel_ramos_sobre_boavi_20200804122338/mp4/oj_daniel_ramos_sobre_boavi_20200804122338.mp4
Havia uma grande diferença entre a ideia de jogo que eu tinha e a que existia. Acho que ganhei o desafio.
Pensa que os adeptos ficaram contentes consigo e com o seu trabalho?
-Nem sempre os resultados ajudaram e os adeptos, em todos os clubes, olham muito para os resultados, é por aí que classificam um bom ou um mau treinador, um bom ou mau jogador. Mas acho que eles perceberam que com poucos ovos conseguimos fazer boas omeletes e de qualidade. Acho que olharam para isso. E nunca me ouviram a queixar; foi aquilo que me foi dado, foi aquilo que o Boavista podia dar. Julgo que os adeptos perceberam isso. Passámos por adversidades, as pessoas do piso 1, que era o que ocupávamos, estão bem no alto. Não havia nenhum eu, era sempre nós. A estrutura deu-nos todo o apoio possível.
12496343
A conversa que não aconteceu
A permanência não estava ainda garantida e começou a falar-se de um novo treinador para o Boavista. Como é que lidou com isso?
-Isso não agrada a ninguém, não foi com agrado que as notícias foram recebidas, mas não nos perturbou. Até porque, se olharmos para esse período, verificamos que soubemos olhar para dentro, tratar do grupo de trabalho, focarmo-nos no que era realmente importante. Essa foi a estratégia. Disse aos jogadores que tínhamos de ser nós a dar as respostas dentro do campo, porque estávamos a trabalhar para a nós e para o Boavista, para o nosso bem-estar, para as nossas famílias. É lamentável o que se passou, mas soubemos dar a volta.
https://d3t5avr471xfwf.cloudfront.net/2020/08/oj_daniel_ramos_sobre_saida_boavi_20200804124822/mp4/oj_daniel_ramos_sobre_saida_boavi_20200804124822.mp4
Acha que não foram elegantes consigo?
-Eu não sei de onde saíram essas notícias. Para mim é um mistério. De uma forma aberta e sincera, nós ficámos de falar no final do campeonato. Isso era o que deveria ter acontecido e foi isso que não aconteceu, porque não se proporcionou da parte da estrutura diretiva esse encontro. Faltou uma conversa para percebermos se de parte a parte havia interesse na minha continuidade. O presidente optou pelo silêncio. À medida que o tempo foi passando, fui percebendo que não havia interesse. Percebi que não valia a pena equacionar a continuidade. Tratei de ser profissional, respeitar o clube como merece e como merecem os seus adeptos. Foi estranho o que aconteceu, não saí zangado, mas ainda vou tentar, um dia, falar com o presidente para perceber o que realmente se passou. Eu penso que estará ligado à grande reestruturação que o Boavista vai sofrer, se calhar faltou alguma frontalidade. O que estranho é o silêncio.
Gostava de ter continuado?
-O projeto podia ter uma boa evolução, e por mais do que uma razão. A equipa estava num processo evolutivo, havia uma grande empatia no grupo de trabalho e, com uns ajustes, o Boavista tinha pernas para evoluir bastante mais. Depois, iria ter aquilo que não tive. Quando entrei, o desenho configurava entradas e saídas em janeiro, melhorar a equipa em alguns sectores. Isso nunca aconteceu. Houve saídas, mas não houve entradas. Perdi jogadores, como o Rafael Costa e o Neris, e não entrou nenhum. Trabalhei com os que ficaram. Mesmo assim, a equipa soube dar uma boa resposta. Por isso, com uma boa pré-época, com reajustes no plantel, que são normais em todas as equipas, o Boavista tinha muito a ganhar num processo de continuidade que acabou por não acontecer.