João Souto é conhecido por jogar hóquei em patins e a impulsividade é imagem de marca. Campeão pelo Valongo em 2014, vice-campeão europeu pela Oliveirense em 2016 e 2017, o avançado tem um lado que poucos conhecem. Finalista de Medicina, o estudante exemplar da Universidade do Porto transforma-se num furacão quando entra em campo.
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Na pista, como na vida, João Souto é de paixões, mas se, no hóquei, o avançado não tem meio-termo e deixa tudo em jogo, perseguindo-o a fama de "bad boy", na vida real parece outra pessoa. Souto, de 24 anos, é finalista do curso de Medicina e um estudante dedicado que O JOGO encontrou na biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto a preparar mais uma prova e já a pensar no exame Harrison que, dentro de um ano, terá de superar para um dia poder ser ortopedista.
O hóquei entrou na vida de João quando "tinha apenas quarto/cinco anos e ia ver jogos e treinos do Fânzeres", o clube onde jogou o pai Afonso, do qual também chegou a ser dirigente e que fica à porta de casa. "Desde os primeiros treinos que vi, adorei logo. Sempre gostei do hóquei, mas o meu pai claro que forçou um pouco; ele tinha gosto em que eu desse continuidade à tradição do desporto da terra", recorda João Souto. A mãe Alcina era quem o puxava para a natação - "coisa que não gostei", esclarece -, mas também foi ela que um dia, sem o pai saber, o levou aos treinos de captação do FC Porto: "E fiquei. Passei anos muito felizes no FC Porto até ao meu último ano de júnior", anota o futuro médico, contando que um dos sonhos de infância "passava por jogar na equipa principal" dos azuis e brancos. "Quando estava na formação do FC Porto era um sonho natural. Hoje em dia, vejo as coisas de forma diferente: não fecho portas e qualquer grande é atrativo. Jogo na Oliveirense que merece a minha admiração e que coloco ao nível de um Benfica, FC Porto ou Sporting", explica Souto, contando como "o interesse pela Medicina chegou no secundário". "Foi quando comecei a gostar de Ciências. Gostava da ideia de cuidar das pessoas. A Medicina é hoje a minha outra grande paixão. Uma não existe sem a outra."
Equipado com a camisola da Oliveirense, patins calçados e stick em punho, João, o vice-campeão europeu, é um durão ao estilo Pedro Gil, um dos ídolos de infância. "Eu jogava na formação do FC Porto e ele era o melhor do mundo. Eu admirava-o muito. Fala-se muito na agressividade dele, mas nisso não me revejo. Eu sei reconhecer que ele é muito mais do que isso e que fora de campo é uma excelente pessoa" refere Souto, defendendo-se: "Quem me conhece, sabe que em campo sou uma pessoa e fora sou outra. Posso ser impulsivo em campo, mas não deixo de ter muitos amigos que sabem que sou boa pessoa. Muitas vezes, o hóquei serve para libertar o stress e para descarregar energias, mas é também a minha profissão e respeito todos."
Na pele de Dr. João Souto, ele é o menino atinado e acusado por quem o melhor o conhece, a irmã Marta, de ser "demasiado organizado". "Ela brinca e diz que sou o filho preferido, mas não é verdade", afirma, revelando: "Ela e a minha mãe são fanáticas de hóquei. A Marta é enfermeira em Lisboa, mas arranja maneira de ir sempre aos meus jogos e apoia-me na exata medida em que me critica, tal como a Rita, a minha namorada." E foi assim, no jogo recente com o FC Porto, em que João viu um cartão vermelho, falhando os últimos três jogos do campeonato: "Tanto a Marta como a Rita disseram que foi injusto o castigo, mas disseram que tenho de melhorar o controlo emocional. Para mim, o castigo foi injusto. Posso ter fama de entusiasta, mas não sou mau. Podem considerar-me impulsivo, mau não."
Se a adrenalina do hóquei parece colidir com a exigência da Medicina, João nega e facilmente desmonta o aparente paradoxo: "Quem estuda medicina, sabe que terá de estudar para sempre, a ciência está permanentemente a evoluir. É mais complicado errar numa cirurgia do que um golo e muitas vezes chego a casa depois de falhar um, mas não me deixo abater nem ficar muito tempo envolvido nesse lado negativo, porque penso que falhar enquanto médico tem repercussões muito maiores. Gosto destas duas vertentes; quando uma não corre bem, refugio-me na noutra."
Focado no exame Harrison, no qual precisa de boa nota para seguir Ortopedia - "É mais fácil jogar a final four da Liga Europeia", graceja -, João Souto mostra determinação: "Quero ser ortopedista porque sou demasiado apaixonado pelo hóquei para seguir Medicina e me desligar."
Um dia destes, quando começar a exercer, o avançado terá de optar pela magia do jogo ou pela rotina do consultório: "Sei que estou a chegar a uma fase que vai ser difícil. O Pedro Seabra [central da Seleção Nacional de andebol] depois da especialidade pediu licença sem vencimento e continua no desporto. Passa por aí um pouco o meu objetivo. Quero entrar na especialidade, continuar a jogar o máximo que conseguir."
O olhar clínico do avançado: "Lesões? Analiso, mas não me meto"
As lesões fazem parte da vida de jogador e, aos poucos, na equipa, João Souto já vê os problemas físicos com olhar clínico: "Analiso-os interiormente, mas não me meto no trabalho da equipa técnica", afiança. "Este ano, o Jordi [Bargalló] fez uma radiografia à mão e no treino a seguir perguntaram-me o que dizia o exame e brincaram comigo", recorda, falando da pior lesão que já sofreu: "Tive uma lesão do cruzado posterior no meu último ano de Valongo. Não deixei de jogar, mas limitava-me muito e, se calhar, fiz uma época abaixo das expectativas porque andava a forçar. Há lesões que se se tornam crónicas, porque num plantel curto, cada jogador é fundamental e pede-se que suporte um pouco a dor e que não fique fora de um jogo. Mas, felizmente, não há muitos casos." Em forma, Souto reza para nunca ser travado por uma lesão grave. Sonha jogar por muitos anos e, de imediato, quer voltar à Seleção Nacional que em agosto parte para o Mundial da China. "É um sonho legítimo e sei que o selecionador acompanha o meu trabalho", acrescenta, sonhando andar muito tempo no topo, como Carlos Nicolia, o jogador que atualmente mais admira - "faz coisas que mais ninguém faz", considera -, para não falar em Cristiano Ronaldo, para ele "o maior desportista de todos".
A adrenalina de um título inesquecível e inspirador
Ia no início do curso quando se mudou do FC Porto para Valongo, "por incompatibilidade com o treinador". Nesse ano, "jogava nos seniores e juniores", nos intervalos estudava e pouco sobrava para dormir: "Quem tem paixão, concilia e todos me ajudaram sempre muito. Já tive exames em épocas especiais, já tive professores que facilitaram em algumas presenças." No Valongo, foi campeão nacional em 2014: "Foi o ponto alto da minha carreira, histórico, inesquecível. Ninguém acreditava, todos pensavam que mais tarde ou mais cedo íamos tropeçar. O jogo em casa com o FC Porto é o que recordo mais vezes e que vou ver mais vezes à internet. É inspirador. Muitas vezes, antes de jogos importantes recordo-o." Depois do título, veio o convite do Sporting, que João negou: "Foi uma semana complicada na minha vida. A proposta era aliciante, mas não se concretizou. Tinha acordo com o Valongo e pesou o curso, precisava de estabilidade para conciliar hóquei e estudos. Se tivesse ido se calhar não era agora finalista de Medicina." Na Oliveirense, onde já é por duas vezes vice-campeão da Europa, diz que conheceu "as melhores pessoas". Este ano, a sua equipa "morreu" na praia, tanto na Europa como no campeonato. Para João, "falta cultura de vitória e se calhar também o impacto de emblemas como FC Porto e Benfica que a Oliveirense ainda não tem". Ver os últimos jogos da bancada foi o mais doloroso: "Custou-me o jogo em casa com Sporting. Temos de nos queixar de nós próprios. Perdemos aí o título. Na Luz, foi diferente; porque dependíamos do FC Porto."