Luís Horta fez parte de uma geração de ouro de corredores portugueses, mas foi na luta contra o doping que se tornou mais conhecido. O também fisiatra está de regresso a Portugal depois de dois anos a trabalhar no Brasil
Corpo do artigo
Luís Horta não vai voltar ao Brasil tão cedo, apesar de ter autorização de residência no chamado país irmão e de a sua mulher ser brasileira. As acusações que fez na última semana ao Ministério do Desporto e ao Comité Olímpico do Brasil não lhe permitem encarar uma viagem com tranquilidade. Foi, de resto, para se proteger, a si e à sua família, que decidiu falar publicamente apenas quando estivesse em Portugal, o que aconteceu na semana que passou. Luís Horta, antigo presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), era até há cerca de um mês o responsável pelo planeamento dos controlos antidoping fora da competição no Brasil.
Diz que os responsáveis da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), onde trabalhou nos últimos dois anos, foram pressionados para não fazerem controlos antidoping a partir de junho.
Sim. Eu e o Marco Aurélio Klein, que era o responsável máximo da ABCD. Estávamos a ser sufocados e, a partir de certa altura, chegámos à conclusão de que era impossível não ser intencional.
Esteve a trabalhar na ABCD, contratado pela UNESCO, durante dois anos. Como correu?
Até junho último, correu bem Mesmo num país com muita corrupção e conflitos de interesses, fomos conseguindo caminhar e organizar o controlo antidopagem no Brasil. Infelizmente é com muita mágoa que não vou poder ir ao Brasil nos próximos tempos. Estou certo que a maioria dos brasileiros não se revê na atitude destes governantes de tentar ganhar medalhas olímpicas a qualquer preço.
Podemos estar perante um projeto estatal de doping como o da Rússia?
Neste momento não se pode comparar, mas se não houver alguém com coragem para denunciar a situação, pode evoluir para algo parecido. Stepanova e o marido tiveram uma enorme coragem ao denunciar o esquema generalizado de doping na Rússia com o apoio estatal [ver ao lado]. Hoje li umas declarações do nadador Michael Phelps, em que diz nunca ter competido num ambiente totalmente limpo. Todas as pessoas do desporto deveriam refletir e repensar as suas atitudes.
Continua a achar que vale a pena lutar contra o doping?
Sim. É sempre um enorme desafio. Estive na criação da Agência Mundial Antidoping, ajudei na elaboração dos seus regulamentos. Trabalho nisto há 20 anos e pretendo continuar a fazê-lo. Vou esperar que surjam convites a nível internacional.
Durante 16 anos liderou a luta contra o doping em Portugal. Como vê o trabalho do atual ADoP, liderado por elo ex-inspetor da PJ, Rogério Jóia?
Não está a decorrer nos moldes corretos. Sinto que muito do meu trabalho foi posto em causa e até destruído.
De que forma?
Não se faz o número suficiente de controlos fora da competição, houve atletas que foram aos Jogos Olímpicos sem terem sido testados, os passaportes biológicos estão parados, o laboratório está suspenso. Estive 16 anos à frente da instituição e o laboratório esteve sempre acreditado. Neste momento não está! Além disso, se for à página da ADoP, os últimos dados estatísticos disponíveis são de 2014. Onde estão os números de 2015?
Foi corredor das décadas de 1970 e 80. Certamente cruzou-se com o prof. Moniz Pereira...
Além de ter sido atleta do Sporting, estive sob a sua orientação na Seleção Nacional. Eu estava em Estocolmo quando o Fernando Mamede bateu o recorde do mundo dos 10 000 metros. O Carlos Lopes foi 2.º e eu fui 11.º nessa corrida e consegui os mínimos para os Jogos de Los Angeles. Lembro-me que, na noite a seguir, nenhum de nós conseguiu dormir tal era a euforia.
O que falta dizer sobre o Senhor Atletismo, falecido há uma semana?
Ninguém escolheu a palavra "rigor" para o definir - rigor e capacidade de trabalho, além de que tinha um sentido de humor muito gostoso. Nos estágios da seleção, ele já sabia que era eu que ia, todos os dias, acordar o António Leitão. Ele gostava de ir para a noite e apanhar uma reprimenda do professor Moniz Pereira era algo tão devastador para nós que ninguém queria estar nessa posição. Vivemos bons momentos, com o sentimento de que éramos uma das melhores equipas do mundo e, acima de tudo, com o orgulho de competirmos de forma limpa.
SAIBA QUE
A atleta russa Yuliya Stepanova, especialista nos 800 metros, foi proibida de participar nos Rio"2016 pelo Comité Olímpico Internacional (COI), já depois de a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) ter dado sinal verde à sua participação em competições internacionais sob bandeira neutra. De acordo com a IAAF, Stepanova, ao denunciar o doping de Estado na Rússia, contribuiu para "a proteção e promoção dos atletas, do jogo limpo e da integridade e autenticidade do atletismo". O COI não pensou o mesmo e, a 24 de julho, vetou a sua ida aos Jogos, alegando a suspensão de que foi alvo em 2013 por irregularidades no passaporte biológico. "O COI esteve muito mal nesta decisão. Stepanova é uma atleta arrependida, cuja ação foi determinante na luta contra o doping. Deveria ir aos Jogos", defende Luís Horta.