Um artigo de opinião do advogado Ricardo Nascimento
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Durante anos, a maternidade foi a linha invisível que delimitava o campo das jogadoras: um risco não coberto, uma cláusula implícita, uma hesitação contratual. Bastava o corpo feminino lembrar que podia gerar vida e o futebol — esse mundo de planificações exaustivas — recuava, encolhia-se, como se o imprevisto biológico fosse uma traição profissional. Mas isso está a mudar. Finalmente.
O útero, por mais que custe a alguns departamentos jurídicos de clubes, não é um fator de instabilidade contratual. É um limite. Um absoluto. E, não: não tem cláusula de rescisão.
Desde 2021, por iniciativa da FIFA — e sobretudo com o reforço regulamentar em vigor desde junho de 2024 — a maternidade passou a constar, com dignidade e letras firmes, nos regulamentos internacionais. A nossa Federação Portuguesa de Futebol transpôs essas normas, com rigor, para o seu Regulamento de Estatuto, Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores, estabelecendo um novo paradigma no futebol feminino.
A proteção já não é simbólica. É jurídica. O contrato da jogadora já não pode ser condicionado pela gravidez, nem pela licença de maternidade, nem pelo exercício dos seus direitos parentais. Qualquer tentativa de rescisão nesses termos presume-se abusiva e obriga o clube a pagar indemnizações — com sanções desportivas à mistura.
Mais: a jogadora pode escolher manter-se em treino, jogar (com avaliação médica), ou exercer funções alternativas até ao início da licença. Recebe a remuneração integral até lá, e dois terços do salário durante a licença de maternidade. E, quando quiser regressar, regressa — dentro ou fora da janela de transferências.
A Constituição e o Código do Trabalho já afirmavam que nenhuma cláusula podia restringir este tipo de direitos de personalidade. Mas agora fica reforçado, com letra regulamentar clara, que a gravidez não pode ser vista como uma lesão. É um direito. Não é um problema a gerir, mas uma parte natural da vida da atleta.
Claro que vai haver resistência. E sim, será preciso vigilância.
Mas, pela primeira vez em décadas, uma jogadora que decida ser mãe sabe que não está a rescindir o seu futuro profissional.
O futebol não muda depressa. Mas, às vezes, muda bem. Desta vez, mudou como devia. E já não era sem tempo.