Artigo de opinião de Ricardo Nascimento
Corpo do artigo
O problema de emprestar jogadores não está no empréstimo em si. Está no arrependimento. No receio profundamente humano — quase maternal — de que o jogador ou jogadora, que mal calçava na nossa equipa, resolva mostrar o talento todo precisamente quando joga contra nós.
A cláusula do medo nasce desse trauma antecipado. É como se o clube dissesse: “Podes crescer, evoluir, até ser feliz... mas longe de mim e, por favor, sem me envergonhar em público.” No fundo, é um contrato de empréstimo com crise existencial incluída. Porque, convenhamos, ninguém quer levar um golo de um filho pródigo. E se, por azar, tal atleta for mesmo muito bom? Pois. Aí já não é empréstimo — é drama shakespeariano.
O nome não engana: há medo, há drama, há insegurança emocional. É como se os clubes olhassem para os seus ex-jogadores com o mesmo pânico com que se olha para um(a) ex que começou a ir ao ginásio. O problema é que, em vez de irem a um psicólogo, resolveram pôr isso por escrito.
Em Portugal, ao contrário do que talvez fosse de esperar de uma competição profissional, o medo foi oficializado. O artigo 78.º-A, n.º 5 do Regulamento das Competições da Liga Portugal diz, preto no branco: “Durante o período da cessão, é proibida a utilização dos jogadores cedidos nos jogos disputados entre os clubes cedentes e cessionários.” Traduzindo para linguagem comum: “se te empresto, não me envergonhes” ou “não vou ser morto pela minha própria arma”.
Ou seja, por cá não há espaço para o brilho do emprestado contra o clube cedente. Se o jogador sonhava com uma pequena vingança desportiva, que espere sentado — ou no banco, como manda o regulamento.
Claro que a Liga quererá acautelar um risco de manipulação ou conflito de interesses, por via da relação contratual ainda existente com o clube de origem e parte da premissa de que o jogador não é capaz de agir com profissionalismo e integridade — uma ideia com a qual discordamos.
Já a UEFA, por exemplo, teve mais bom senso. O caso mais célebre deste ridículo ocorreu em 2014, quando o Chelsea emprestou Thibaut Courtois ao Atlético de Madrid. A cláusula dizia que, se o belga jogasse contra o Chelsea, o Atlético teria de pagar 3 milhões de euros por jogo. Três. Milhões. De. Euros. O Atlético fez o que qualquer pessoa sensata faria ao ver a renda de um T0 em Lisboa: disse que não pagava. A UEFA interveio e declarou a cláusula inválida e imoral, por violar a integridade da competição.
A UEFA lembrou que o futebol não é uma feira de vaidades contratuais. E que a integridade da competição – essa coisa pitoresca que todos fingimos valorizar – não pode ser condicionada por medos paroquiais de um clube ver o seu antigo jogador a fazer aquilo para que foi contratado: jogar bem. Courtois jogou – e, ironicamente, brilhou contra o clube que o quis afastar do relvado.
Mais ainda: a FIFA, no seu Regulamento sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores, artigo 18bis, proíbe expressamente que um clube tenha influência sobre o desempenho de outro. Isto é, se um contrato disser “não jogas contra mim”, é como se dissesse “não podes fazer o teu trabalho”. E isso, caros leitores, é mais próprio de um reality show de domingo à noite do que de uma competição que se quer séria.
Há quem diga que isto tudo é legítimo, que os clubes têm de se proteger. Mas proteger-se de quê? De um golo bem marcado? De uma assistência traiçoeira? De uma cueca na linha? De uma defesa de um penálti? O futebol é imprevisível — e ainda bem.
O que é triste é que, em vez de confiar no mérito desportivo, o sistema se feche em cláusulas que mais parecem ditadas por ciúmes mal resolvidos. No fim de contas, o futebol devia ser jogado por quem está em campo — não por cláusulas escritas a medo.