Uma lenda do andebol em entrevista a O JOGO: elogios a Portugal e a surpresa FC Porto
Lino Cervar, selecionador croata e lenda da modalidade, elogiou Seleção Nacional e FC Porto em entrevista exclusiva a O JOGO.
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Lino Cervar é, indiscutivelmente, uma das figuras mais relevantes do andebol nos últimos 20 anos.
Selecionador da Croácia desde 2002, foi campeão do mundo em 2003 (em Portugal) e olímpico em 2004 (Atenas), conseguindo ainda duas medalhas de prata em Mundiais (2005 e 2009) e três em Europeus (2008, 2010 e 2020). Em 22 grandes competições, foi 16 vezes às meias-finais e ainda este ano discutiu o título europeu com a Espanha.
Também ligado à política, já foi deputado e diz que gosta de todos os desafios, não querendo parar para não envelhecer... Casado desde 1975 e pai de duas filhas, Cervar falou em exclusivo a O JOGO.
Disputou a final do Europeu de 2020 com a Espanha. Contava chegar tão longe?
-Na minha carreira procurei sempre atingir o melhor. Estaria a mentir se dissesse, na altura, que iríamos jogar a final, especialmente devido às circunstâncias, que vão desde as lesões até à ultima vez que conquistamos uma medalha [2010]. Mas nunca perdi a fé nos jogadores e também nunca perdi fé na conquista de uma medalha.
Esteve a ganhar nesse jogo, mas a Espanha deu a volta a venceu. Foi um resultado justo?
-Não tenho certeza. Os pormenores foram decisivos. Teríamos de fazer uma análise muito séria. Mas, quando um homem perde um jogo, tem de aceitá-lo como homem. Foi o que nós fizemos e, por isso mesmo, somos, sem dúvida, vencedores morais dessa partida.
O que achou do Campeonato da Europa deste ano e das suas surpresas, como o afastamento da França na primeira fase e a Alemanha ser apenas quinta?...
-Havia muitas seleções com qualidade semelhante. Diria que existiam umas dez seleções em que cada uma poderia ganhar à outra. Se calhar, este foi o Europeu mais equilibrado dos últimos anos. Mas, quando vemos o contexto geral, sem dúvida que as duas melhores seleções foram à final.
E Portugal, que conseguiu um histórico sexto lugar, surpreendeu-o?
-Não. Aqueles que acompanham o desenvolvimento do andebol em Portugal e dos seus clubes, como Sporting, FC Porto, Benfica, entre outros, têm de reparar que investiram bastante na modalidade. Para mim, o FC Porto é a surpresa da Liga dos Campeões. O investimento de Portugal tinha de trazer resultados. Outro fator muito importante foi, também, a naturalização de alguns jogadores, que deram um grande contributo nas posições importantes na equipa.
Viu a seleção portuguesa jogar? O que acha do seu estilo de jogo?
-Vejo e analiso todas as seleções e assim faço também com Portugal. Gostei do jogo que a seleção portuguesa apresentou. Estão sob grande influência do Paulo Jorge Pereira, da metodologia dele, do processo de treino e da forma de trabalhar. Demonstraram um grande desenvolvimento na parte tática do jogo e especialmente no 7x6, sistema de ataque onde apresentam muita criatividade.
Aos 69 anos, técnico diz que não ficará muito mais tempo no ativo, mas quer ir aos Jogos de Tóquio e um dos seus próximos desafios será o apuramento olímpico, no qual a Croácia defrontará Portugal
Destaca algum jogador português?
-Portugal tem muitos bons jogadores. Os que captaram mais a minha atenção foram os dois excelentes pivôs. Têm também um excelente central e um grande guarda-redes.
No apuramento olímpico, em abril do próximo ano, Portugal será um dos adversários da Croácia. O que espera dessa partida?
-Portugal será um adversário muito complicado, como se pode confirmar pelos jogos que fizeram no Europeu, especialmente o da vitória com a França. Vamos ter que nos preparar muito bem para defrontar a seleção portuguesa. O nosso grupo é muito forte. Diria até que é o mais difícil, por isso teremos de levar Portugal muito a sério.
"Na Europa temos de desenvolver o jogo e não o conflito"
"O andebol parece estar em regressão, mas tem grandes possibilidades. Ouvi isso de pessoas ligadas a outras modalidades, até dos Estados Unidos. O andebol é uma modalidade global de pavilhão, especialmente jogada na Europa, logo é a Europa que tem a responsabilidade de trabalhar para o seu desenvolvimento", disse Lino Cervar a O JOGO. "O andebol tem muitas possibilidades no plano de velocidade, criatividade, dinâmica, entre outras. Nós, todos, temos de trabalhar no desenvolvimento do jogo e não no conflito. Julgo que estamos a dar muita atenção à força. Consigo ver muito espaço de desenvolvimento nos jovens. É com eles que temos de trabalhar, porque são eles que podem desenvolver essa criatividade, podem pensar de forma diferente e perceber o andebol de outra forma", continuou o croata, concluindo: "É claro que temos de mudar as regras do jogo, porque se elas se mantiverem assim o andebol continuará em regressão".
"Mundial"2003 dava um filme"
Portugal organizou o Mundial de 2003 e a Croácia não era, à partida, uma das candidatas. Tinha sido última noEuropeu anterior e acabou por sair de Lisboa com a medalha de ouro.
Ainda falando de Portugal, foi no nosso país que se sagrou campeão do mundo, em 2003. Que recordações tem?
-Portugal" 2003! Lembro-me que era um domingo, em Lisboa, e nesse dia iniciámos uma nova era no andebol mundial. Tivemos uma seleção que passou a ser admirada no mundo e demonstrámos que existia outra forma de jogar, onde domina o pensamento, a criatividade, a imaginação e não a pura força e a brutalidade. Muitos dos melhores treinadores mundiais disseram que a Croácia, no Mundial de Portugal"2003, com o seu jogo posicional, atingiu a perfeição. Fomos uma seleção que conquistou simpatias de todo o mundo.
Quando o Europeu começou, a Croácia não estava entre as favoritas...
-Esses dois anos foram algo de especial. Nós éramos a seleção que, em 2002, no Campeonato da Europa, terminou em último lugar sem ter somado sequer um ponto. Um ano e seis meses depois fomos campeões mundiais e a seguir olímpicos, algo que nunca tinha acontecido no passado.
Ao somar também o título olímpico, em 2004, esse foi o seu período de ouro...
-Todo o mundo tentou analisar a forma como conseguimos essa proeza. Esses acontecimentos não merecem apenas que nos lembramos deles; merece um filme, um grande filme!
"Não estarei nos recintos, mas não deixo o andebol"
Quase nos 70 anos, que completará a 22 de setembro, o selecionador croata já tinha dito que terminaria a carreira nos Jogos de Tóquio, entretanto adiados para 2021. Mas garante que ficará ligado à modalidade.
Tem 69 anos; é verdade que está quase a deixar o andebol?
-Eu cinjo-me a uma regra, que diz que envelhecemos no momento em que deixamos de ter curiosidade e de investir em nós próprios. De certeza que não irei estar muito mais tempo nos recintos de andebol, mas não irei abandonar o andebol. Tentarei passar minha visão, conhecimento e experiência para as gerações mais novas.
Qual foi o melhor jogador de sempre? E porquê?
-Eu gosto de ver isso de outra forma. Não creio que seja bom comparar. Cada período tem os seus heróis, grandes jogadores. Nesta altura, é o Karabatic [França], antigamente era Ivano Balic [Croácia] e ainda mais antigamente era o Magnus Wislander [Suécia]. Mas ao longo dos anos certamente que alguém gostou mais da forma de jogar de um certo jogador e outros gostaram de outro.
O que é fundamental para se ser um jogador do topo mundial?
-Boa pergunta. Hoje as pessoas dão valor a coisas estranhas. Precisamos de diferenciar um craque de verdade de um craque mediático. Mediático é aquele que põe o público em delírio e é atrativo. Um verdadeiro craque é aquele que se sacrifica pela equipa, que decide os jogos e pensa em cada ação. Esse verdadeiro craque precisa de ter um grande caráter. Nele estão conjugados coragem, persistência, determinação e atitudes positivas.
"Penso na política de educação de jovens"
Lino Cervar foi deputado na assembleia croata, entre dezembro de 2003 e o mesmo mês de 2011.
Foi deputado na assembleia croata. Como surgiu a política na sua vida?
-Já não estou envolvido na política mas, de alguma forma, todos temos de nos envolver nela, para que ela não se envolva em nós. Quando digo isso, penso na política de educação de jovens, na política do desenvolvimento do desporto e dos desportistas... Por isso, gosto de dizer que nunca fui político, mas sim um treinador que procurou sempre estar informado e preparado para educar os seus jogadores. Um treinador inculto não tem o que procurar no andebol, por isso apoio muito as ações da EHF [Federação Europeia de Andebol] e IHF [Federação Internacional de Andebol] que insistem na educação dos treinadores.
O que mais gosta de fazer, para além de política e treinar andebol?
-Estudo, jogo ténis, gosto de todo o tipo de competições. Aceito todo o tipo de desafios.
Como surgiu o andebol na sua vida?
-O culpado foi o meu primeiro professor na escola, que nos arrastou para a modalidade. Apaixonei-me pelo andebol à primeira vista e mantive-me ligado a ele toda a minha vida.
Que outras modalidades vê e aprecia?
-Embora uns mais do que outros, gosto de ver todos os desportos, porque com todos eles podemos sempre aprender algo novo. Desde preparação, a tática, até à forma de pensar o jogo e à procura de soluções para nos safarmos das situações críticas.