Rui Costa: "Com tudo o que ganhei até hoje, não foi certamente por ir atrás da roda"
Mudou para a Intermarché-Circus-Wanty e renasceu. Aos 36 anos, Rui Costa somou quatro vitórias, vários lugares de honra e culminou a época ganhando uma etapa na Volta a Espanha.
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O poveiro Rui Costa já fez este ano 78 dias de corridas, mas anda agora a treinar em montanha para fechar o ano numa série de clássicas italianas que culminam com a Lombardia. A O JOGO fez o relato de uma época em que se sente "renascido".
Podemos dizer que a Vuelta correu na perfeição?
Podemos, porque o objetivo era ganhar uma etapa e foi concluído. Ter uma vitória numa Grande Volta é sempre importante, para mim e para a equipa.
Dez anos sem ganhar nas Grandes Voltas já era demasiado?
Talvez fosse. Realmente foram muitos anos, mas nunca baixei os braços. Consegui bastantes pódios, ataquei muitas vezes e fiquei perto. Sei que o importante era ganhar, mas ficar perto serve sempre para dar alguma motivação, sabemos que estamos lá perto e aumenta a vontade de lutar.
A fuga na última etapa da Vuelta foi dos melhores espetáculos em que já participou?
Foi, porque se fugiu ao habitual. A última etapa decide-se sempre ao sprint, mas sabíamos que em Madrid não estava um nível de sprinters e lançadores como se vê no Tour. Em Paris é quase impossível fugir, que a velocidade é muito alta e são muitas as equipas com um corredor para a vitória. Em Espanha, não havendo tantos sprinters, e curiosamente o melhor deles, o Kaden Groves, a juntar-se a nós, picado com o Remco Evenepoel, as hipóteses aumentaram. Mas mesmo assim foi deixar tudo nos últimos 500 metros.
Se chegassem isolados à meta, sabia que era difícil ganhar?
Numa situação destas queria o melhor resultado possível. Sabia que ganhar era difícil, mas podia fazer um terceiro ou quarto lugar. Se estivéssemos sem a pressão do pelotão, e já tinha escolhido a roda do Ganna, porque sabia que era o corredor a marcar, poderia ter tentado arrancar de longe.
Foi interessante ter tantos portugueses na Vuelta? Teve o Almeida no nono lugar, o Rui Oliveira a terminar sem saber ter um braço fraturado...
Por acaso no último dia ele disse-me que queria fazer uma radiografia, que estava com a pulga atrás da orelha...
É o exemplo de que os ciclistas são por vezes uns heróis?
Sim. Ele no dia em que caiu sofreu muito para terminar. O receio é sempre ter uma fratura e na altura disseram-lhe que não. No dia seguinte, com montanha, disse-lhe que aquele era o dia que tinha de passar: 'Se o fizeres, acabas a Volta a Espanha'. Sabia que ele queria muito terminar. Naquele dia sofreu imenso, era uma etapa super dura. Quanto ao João, fez dentro do que se imaginava. Face aos corredores que estavam a disputar a corrida, ele apontava o top-10 como um bom resultado, o top-5 como muito bom e o top-3 seria o excelente. Nem todas as Grandes Voltas são iguais. Ele passou momentos difíceis, que apanhou frio e sentia a garganta arranhada. Perdeu algum tempo, mas não baixou os braços, ao contrário do Remco.
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Esse acabou por ser várias vezes seu companheiro de fuga...
É interessante que na véspera tinha dito aos meus colegas que ele era um corredor forte, super explosivo, e que na Vuelta anterior tinha ganho, mas que mesmo assim o achava mais para clássicas e corridas de uma semana. Face ao grupo de excelentes corredores de três semanas que atualmente temos, será difícil ele fazer-lhe frente. Estou a falar do Vingegaard, do Roglic e do Pogacar. Não me vou identificar como igual, que não sou como ele, mas vivi aquilo que ele tenta fazer, está a tentar mudar aquilo que é geneticamente. Eu era um excelente corredor de uma semana ou de um dia e quis aplicar tudo nas Grandes Voltas. Foi muito difícil. Em 2014 trabalhei como nunca e uma broncopneumonia também me atirou abaixo. Voltei às corridas de uma semana. Ele, mesmo sendo muito forte, é um pouco assim. Na Vuelta ficou vazio num dia e depois... foram bombardeamentos nos seguintes! Foi o mais combativo da Vuelta.
Alguns disseram que é difícil segui-lo, que parece uma moto...
Quando está bem não é fácil, o ritmo dele é muito forte. Sobretudo a subir, quando decide "apertar".
O Rui Costa foi dos poucos a batê-lo em fuga e ele foi dos primeiros a dar-lhe os parabéns.
Temos alguma amizade, trocamos mensagens. Cheguei a dizer-lhe: eu tenho esta etapa, aquela e a outra marcadas. Tu devias optar pelas mais duras, que nessas ninguém te dá luta... Disse-lhe para esquecer a 15.ª, ele tentou na mesma e não ganhou! [ri-se]
"Já tinha saudades de saber o que era ganhar"
Esta época foi a do renascimento do Rui Costa?
Pode dizer-se isso. Desde que soube que ia mudar para a Intermarché senti-me motivado. Era uma nova equipa, outro material... No fundo somos como crianças, quando é tudo novo a motivação é superior. Foi um ano maravilhoso. Importante por me reencontrar, já tinha saudades de saber o que era ganhar, aquela emoção de entrar nas fugas. Ter começado a época a ganhar no primeiro dia foi importante para que tudo saísse bem. A primeira fase da temporada foi excelente até à Strade Bianchi, que fechei com um quarto lugar. A segunda fase não foi a melhor. Preparava as clássicas e durante o estágio de altitude fiquei doente duas vezes seguidas. Quase não consegui treinar. Quando recomecei, estava a descer a Serra Nevada e a roda da frente resvalou, caí e magoei-me a série. Não baixei os braços, fomos a uma loja de bicicleta, reparou-se tudo o que estava estragado e sai de novo a treinar. Ainda fiz seis horas, sempre a sangrar. A seguir tive o País Basco, mas sem boa condição. Nas clássicas só me senti melhor na Liège-Bastogne-Liège, mas depois tive a Romandia e um azar logo à partida do prólogo [avaria] deixou-me com um problema num joelho, que bateu na bicicleta. Foram várias semanas a perder. Ainda fiz 15 dias de altitude, o que não era o suficiente para recuperar a melhor forma. Na Volta à Suíça parecia estar outra vez melhor, mas as circunstâncias daquela corrida... Ter perdido o Gino [Mader] foi um momento muito doloroso, deitou-me muito abaixo, ao somar-se a tudo o que me tinha acontecido. Não cheguei ao Tour nas melhores condições e talvez por isso foi depois que senti a forma a crescer. Em San Sebastian senti-me. Nunca tinha concluído no top-10 e foi isso que me levou a pensar na Volta a Espanha. Conversei com a direção da equipa e deram-me luz verde. Foi a melhor opção.
Que lhe falta agora atingir? Uma vitória no Giro, para completar as três Grandes Voltas? Ou numa clássica Monumento?
Tenho de ser realista. Há objetivos que são muito difíceis. Face aos corredores que agora temos em clássicas Monumento, como Liège e Lombardia, e que são de topo, não é fácil. Lutar com um Pogacar ou um Remco não é fácil. Quando os finais não são demasiado duros o jogo tático pode ser importante, mas com esse tipo de corredores não funcionam. Eles levam equipas que desempenham um grande trabalho e lhes permitem atacar no momento certo, tornando-se impossível responder. Para mim, que já estive tão perto, tanto na Liège como na Lombardia, era um sonho, mas sei que agora será difícil. Apontar a uma etapa no Giro, onde também já estive perto de ganhar, não sei... Era agradável entrar no pequeno lote de corredores que ganharam nas três Grandes Voltas, mas se tiver a opção no próximo ano não irei ao Giro.
Que prefere fazer?
Tenho um sonho, o de voltar aos Jogos Olímpicos. E a melhor preparação será fazer a Volta a França. O meu objetivo passa por aí, e fazer também a Volta a Espanha, que parte de Portugal.
Já respondeu a outra questão: se o Rui Costa continuava disponível para a Seleção?
Estou, sem qualquer dúvida. Sei que me têm convocado e não tenho ido, mas porque os percursos não têm sido adequados para mim. Fui chamado para este Europeu, mas naquele percurso não adiantaria. Para o Mundial era preciso estar sempre bem colocado, como se percebeu, e nós portugueses temos algumas dificuldades para andar sempre entre os 20 ou 30 primeiros. Sabia o que me esperava, optei por preparar a Volta a Espanha.
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E em 2024 vai estar de novo na partida da Vuelta, agora em Lisboa?
Espero. Para mim será um sonho: estar numa equipa do World Tour a correr uma Grande Volta e sair no meu país é juntar as três peças fundamentais. Sempre desejei correr uma Grande Volta em Portugal. Por isso espero estar.
A fechar, uma pergunta difícil: como reage aos que lhe chamam "chupa-rodas"?
[ri-se] Já não ligo. É uma palavra dura. Já reagi pior. Agora entra num ouvido e sai pelo outro, se vem de pessoas frustradas nem levo a mal. Quando era mais novo levava mais a peito. Ninguém gosta de ouvir. Quando se entra numa fuga e se está a disputar uma etapa, cada um faz o seu jogo. Se tens de puxar para não ser alcançado, aí deves fazê-lo. Caso contrário ninguém ganha. Dou um exemplo: na etapa que ganhei na Volta a Espanha, o Buitrago pediu-me ajuda a subir. Ora sabia que ele estava no terreno dele e eu mais no limite; disse que o ajudava depois e foi o que fiz. Com tudo o que ganhei até hoje, não foi certamente por ir atrás da roda.