Paulo Jorge Pereira: "Europeu é apenas o rastilho, o incêndio vamos fazer mais tarde"
Na ressaca de mais uma conquista histórica do andebol português, o selecionador revela ambição, mas diz também que ainda há muito trabalho para consolidar o bom momento.
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No dia seguinte ao último compromisso de apuramento para o Campeonato da Europa, O JOGO conversou com Paulo Jorge Pereira no Jardim da Cordoaria, no Porto. Uma entrevista que pode também ler na edição impressa desta terça-feira.
Cresceu aqui nesta zona do Porto, onde estamos. Como era a sua infância por aqui?
- Recordo que passei aqui neste jardim, que na altura estava diferente, muitas vezes a correr, funcionava para nós como uma pista de atletismo. Fundaram aqui um clube na rua das Taipas, já não me lembro o nome, mas algo como Taipas Clube, e fazíamos aqui as provas de atletismo, eu não era muito bom a correr, porque já era mais alto do que os outros, custava-me um pouco (risos), mas participava sempre nessas provas. Vim para aqui com um ano, nasci em Amarante, mas os meus pais acabaram por comprar aqui um restaurante que era de um tio, o Rei dos Galos de Amarante, até há uns anos.
"Tenho muito boas memórias, fazíamos as guerras de calhaus, era Vitória contra a Ribeira"
Tem boas memórias desses tempos?
- Tenho muito boas memórias, fazíamos as guerras de calhaus, era Vitória contra a Ribeira, era o pão nosso de cada dia, todos a fugir uns dos outros, lembro-me perfeitamente desses tempos.
Há 14 anos, quando Portugal se tinha apurado pela última vez para uma grande competição internacional, onde estava?
- Na altura era treinador do FC Porto e fui assistir ao jogo com a República Checa e lembro-me que o sistema defensivo utilizado pelo Mats Olsson foi o 6:0 que utilizávamos no FC Porto, um 6:0 já na altura muito profundo, muito dinâmico. Creio que daqueles quatro centrais, o Inácio Carmo era o único jogador que não era do FC Porto. Nós na altura conversamos, o Mats Olsson sempre foi muito simpático e até agradeceu a possibilidade de utilizar um formato muito parecido com o do FC Porto. Fizemos um jogo brilhante que foi o que nos levou a esse Europeu. De certa forma acabei por dar uma pequena ajuda, da mesma forma que hoje, na situação de selecionador, recebo a ajuda dos clubes.
Como era o Paulo Jorge Pereira treinador nessa altura?
- Eu era muito pior treinador na altura, embora tivéssemos ganho várias coisas. Como treinador principal ganhei duas Taças da Liga, uma Taça de Portugal e um Campeonato Nacional. Também estava a dar aulas no ISMAI e na escola, fazia três coisas, sempre foi muito difícil a minha vida, sempre tive de trabalhar muito para atingir objetivos.
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De lá para cá muita coisa mudou na sua vida?
- Arrisquei um pouco, houve coisas boas, menos boas e más e cá estamos, parece que fui dar a volta para regressar a Portugal, embora continue a pensar que o meu foco vai continuar a ser, em termos de clube, fora de portas. Logo veremos. Para já vou-me centrar na seleção, mesmo tendo tido algumas ofertas, uma financeiramente muito atrativa, quase irrecusável, de um clube do Egito, mas eu preferi ficar com a seleção. Eventualmente depois do Europeu volte a acumular.
Quer dizer que nos próximos meses será apenas a seleção?
- Nos próximos meses, em principio é só seleção. Tinha mais um ano de contrato com o CSM, mas decidi, já em fevereiro, informar o clube que não iria continuar, por várias razões.
Quais são as principais dificuldades de trabalhar fora do país?
- A principal é convencer as pessoas que um português também pode fazer as coisas bem no andebol. Eu até consigo entender um pouco, porque se nos disserem que um sérvio vem para Portugal treinar hóquei, se calhar nem é preciso conhecer o sérvio para dizer que ele não deverá fazer bem as coisas. A imagem que nós temos neste momento, a cotação que temos nos últimos anos, não permite às pessoas perceber que um português pode fazer bem as coisas. A sensação que eu tive estes anos todos é que tinha de convencer as pessoas, tinha de mostrar, tinha de justificar o porquê de fazermos assim, porque é que para mim isto tem de ser feito desta forma.
Isso foi sempre assim?
- Isto foi constante, embora também constantemente tivéssemos ganho coisas. Há sítios onde é muito difícil trabalhar, se não se ganha... As pessoas exigem-nos de tal maneira. Pagam bem, mas também exigem. Estive quatro anos em Angola, em 2010 vencemos a Taça de África, por um, contra a Tunísia e os tunisinos jogavam quase todos na Europa e em clubes de topo, tinham uma grande equipa.
No ano seguinte deixei a seleção para assumir o 1.º de Agosto, conseguimos ter a primeira vitória no Campeonato Nacional em 2011, embora em 2010 já tenhamos ganho o Provincial, foi uma festança. Continuei em 2013, ainda vencemos mais um Provincial. O que fica é o primeiro título para o 1.º de Agosto, hoje é a melhor equipa africana, que ganha quase tudo a nível interno e externo. Entretanto, fui para a Tunísia e ganhamos, na final, a Angola em 2014, também por um, após prolongamento, foi uma luta sempre terrível e a Tunísia, após 38 anos, ganhou a Taça de África. Ainda trabalhei com o Espérance de Tunes, uma das melhores equipas africanas masculinas, na altura em que houve aqueles atentados em que morreram 60 e tal pessoas na praia.
Eu estava em Espanha e telefonaram-me logo a perguntar se eu ia viajar e eu disse que sim, mas vivi situações de recolher obrigatório, o ambiente estava muito instável, depois também houve coisas no clube de que não gostei e pus-me a jeito, quase que provoquei a minha saída. Fiz um acordo e saí em janeiro e entretanto fui surpreendido com o convite do vice-presidente Augusto Silva e disse logo que sim.
Logo assim?
- Logo na altura, sem falar de dinheiro, porque para mim não era muito importante. Trabalhar a bom nível, com a seleção portuguesa e com os atletas que nós temos, que melhor podia eu ter? E ainda por cima poder estar em casa com a família, foi excecional e aceitei logo de seguida.
Como foi estar longe da família tantos anos?
- Houve muitos momentos difíceis. Eu compreendo as pessoas que preferem trabalhar ao lado de casa porque podem dar um beijo aos filhos quando eles vão dormir, isso é muito gratificante, mas por outro lado, quando queremos conquistar coisas grandes, tem de ser assim. E eu ainda não conquistei nada grande, ainda estamos a caminho, vamos ver o que vai acontecer no futuro.
Considera que não conquistou nada grande?
- Eu só quando fizer um spot publicitário a uma marca é que estou autorizado a abandonar o andebol, é um objetivo que eu tenho. Nós vamos à Croácia e vemos outdoors com jogadores e treinadores de andebol a fazer publicidade a marcas importantes e eu penso: 'isto quando acontecer no meu país vai ser excecional' e meti na cabeça que só deixo esta modalidade quando fizer um spot a uma marca importante, porque quererá dizer que o andebol está a vender.
Estava a dizer que teve momentos difíceis...
- Houve. Eu recordo-me, sobretudo quando ia para Angola, de sair de casa a chorar com o meu filho na janela a chorar também. São momentos difíceis... Na altura ele perguntava se o pai o levava à escola. Eu treinava muito cedo em Angola, das 6 às 8 da manhã,e no final era o momento dele ir para a escola e quando a minha mulher o estava a levar ela ligava o messenger e eu ia a falar com ele, como se o levasse, para ele aquilo era eu a levá-lo à escola. Pagamos algumas faturas caras, mas para atingir resultados exigentes temos de ser muitas vezes egoístas e os filhos pagam a fatura. O mais velho não teve a atenção que o mais novo está a ter agora. Eu fui demasiado egoísta e esqueci-me dele muitas vezes, mas ele é uma é uma excelente pessoa, são os dois, aliás. A mãe fez um trabalho excecional e eu vou ajudando à distancia, o mérito é todo dela.
"Ficámos todos muito satisfeitos, como se estivesse tudo bem, mas não está, temos de continuar"
O que sentiu quando apurou Portugal para o Europeu?
- Foi excecional, uma alegria imensa, é difícil explicar, mas a sensação é que isto é apenas o rastilho, o incêndio ainda vamos fazer mais tarde, não podemos é deixar que o rastilho se apague e isso pode acontecer. Ficamos todos muito satisfeitos, como se estivesse tudo bem, mas não está, temos de continuar, o que vou tentar fazer, junto do Paulo Sá, o Diretor Técnico Nacional, é aquilo que faz o Jordi Ribera em Espanha, ele não pára, está uma semana aqui, mais três dias ali, mais quatro acolá, sempre a trabalhar com os treinadores e os atletas mais novos, a passar os princípios de jogo. Vou tentar organizar uma série de eventos mais continuados, pensar também no Campeonato do Mundo de sub-21, ainda esta manhã, antes de vir para aqui, estava a falar com o Nuno Santos, temos oportunidade de fazer um excelente resultados.
Para quem não ia a uma grande prova internacional há 14 anos, falar desde já em tentar superar o sétimo lugar do Croácia'2000 não é demasiado ambicioso?
- É demasiado ambicioso, mas se não formos assim nunca mais vamos ter as coisas. Na altura, quando saí do FC Porto, fiquei uns meses à espera que aparecesse alguma coisa e, um dia, fui a Leon ver a Copa Asobal, em dezembro, e fui surpreendido pelo Manuel Camiña a perguntar-me se eu queria ir para o Cangas. A minha resposta imediata foi que sim, também não falamos de dinheiro, porque há momentos em que o dinheiro não é importante, depois virá por acréscimo.
Foi uma luta grande, porque eu estava vinculado ao serviço público, pedi ajuda ao Pedro Sequeira, o professor António Cunha também ajudou, porque o ministério público não me queria libertar a meio do ano. Depois lá propuseram uma libertação, mas de longa duração, e isso significava perder o vínculo ao quadro e houve colegas que me disseram que eu estava doido, tinha situação estável... Mas eu disse vou e vou mesmo.
Houve momentos em Espanha, na parte final, que tive de escolher entre beber uma cerveja ao almoço ou ao jantar, porque só tinha uma lata e tinha de escolher, não bebo agora senão logo não tenho. Isto foi no final, o clube ficou sem pagar dois meses, num contrato de dez e eu tive de fazer muitas contas. Depois veio Angola e nunca mais parei.
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Mas falava, há pouco, do sétimo lugar...
- Falo do sétimo lugar e sem medo. Se formos demasiado cerebrais e matemáticos a colocar objetivos, vamos colocá-los abaixo daquilo que até poderemos conseguir, porque não queremos correr riscos. Os matemáticos não correm riscos, para eles dois mais dois são quatro, mas para nós tem de ser cinco, se queremos algo mais do que os outros.
"Pouco a pouco, nestes três anos, fomos construindo uma mentalidade ganhadora"
O que aconteceu agora para se conseguir uma qualificação que fugia há 14 anos?
- Antes já estivemos muito perto em várias situações. Eu lembro-me de um jogo no Dragão, em que estivemos muito próximos, com a Islândia. Mesmo o apuramento em que tivemos a Eslovénia e a Alemanha sentimos que podíamos fazer algo melhor, mas fora de casa estávamos distantes. Com a Sérvia foi aquela meia hora a destruir tudo, mas foi meia hora... Pouco a pouco, nestes três anos, fomos construindo uma mentalidade ganhadora, houve algumas alterações na convocatória, temos pessoas com foco diferente.
Toda a gente que andou nestes anos a ajudar era mais ou menos boa, que vinha de coração mais ou menos aberto, mas agora é mais, esta gente vem mesmo comprometida, vem porque quer. Eu posso contar isto porque não vou referir o jogador, mas houve uma altura em que senti que houve um atleta que parecia que tinha dificuldades quando vinha, não sei porque razões, mas sentia que vinha com reticências e eu, de uma forma muito clara, liguei-lhe, falamos uma meia hora ao telefone e disse-lhe: "Se não quiseres vir, não há problema, não te convoco. Se os jornalistas caírem em cima de mim eu assumo", e ele disse "prof, eu quero ir à seleção e vou ajudar" e a partir daí ele mudou e tem-nos ajudado de forma excecional, sempre.
Mais uma vez arrisquei, porque se o perdêssemos era muito mau para nós, mas eu faria isso, não podemos ter na seleção jogadores contrariados, não podemos. Neste momento não há nenhum jogador que não venha com um sorriso na cara, é um prazer enorme, aquela gente chega com os olhos a brilhar.
Como vê este ano do andebol português?
- Excecional, é um ano excecional, mas aquilo que penso é que temos de continuar. Os outros também vão estar mais atentos e preparar melhor os jogos, senão vão perder. Eu disse, antes do jogo com a França e a várias pessoas, que íamos ganhar e uma das razões também era por isso, eles pensavam que eram impossível e quando deram por ela perderam. Hoje, se jogássemos outra vez com eles, seria muito mais difícil, mas muito mais difícil mesmo. Chamamos à atenção, tanto nos clubes como na seleção e agora têm mais respeito.
Vou centrar-me na Seleção, mesmo tendo tido algumas ofertas, uma financeiramente muito atrativa, quase irrecusável, de um clube do Egito
Desde que saiu do FC Porto, nunca mais teve convites para voltar a Portugal?
- Nunca tive nenhum convite de um clube português. Porquê, não sei. Se calhar agora sou muito caro (risos), mas nem isso sei, uma vez que nunca ninguém me convidou. Mas também há boas opções e, neste momento, por exemplo, o Magnus Andersson está a fazer um trabalho excecional, é uma pessoa excecional.
Além disso, em Portugal é impossível o selecionador acumular com os grandes, ninguém acreditaria em mim, iam pensar que eu ia proteger mais este ou aquele e até para mim era uma situação de certa forma incómoda. A rivalidade que existe no nosso país, e é boa, às vezes é o motor das coisas, é tão bom assistir a dérbis... Só não é boa quando a rivalidade é estúpida, com coisas que têm acontecido e que me envergonham.
Temos de pôr a mão na consciência e pensar que vamos todos lutar mas o fim vamos beber uma cervejinha. No desporto reproduzimos a guerra, mas começa e acaba, não é contínua como acontece depois nas televisões. É vergonhoso aquilo a que se assiste.
Mas não gostaria de voltar a trabalhar num clube português?
- Para mim seria mais cómodo trabalhar em Portugal e acumular com a seleção e agora ganhei um gosto à seleção que é uma coisa... Ganhei gosto a trabalhar com estes jogadores, há uma relação ótima com eles. Agora é centrar no Europeu, continuara a aprender e, se possível, a acumular com um clube fora de Portugal. Quando não sei, mas não tenho pressa. Quando acabar o Europeu já posso continuar.
Sente que precisa de férias?
- Imensamente, foi um ano duríssimo para mim. No jogo com a França saí de madrugada de Bucareste e vim dar o treino direto, depois perdi o avião, quando voltei, tive um treino e jogo logo em Constanta.
O que vai fazer nas férias?
- Não sei, mas vou para o Douro, isso é seguro, quero passar na terra dos meus pais.
Vai jogar padel, fazer os Caminhos de Santiago, cozinhar?
- Vou jogar padel, padel sempre, ali ao lado de casa, é espetacular. Temos um grupo de amigos no whatsapp e o pessoal inscreve-se. O Caminho de Santiago é possível, mas o meu sonho é fazer o caminho completo, desde Saint Jean Pied de Port, de França a Santiago, isso demora 25 dias a pé, mas pelo menos fazer mais um troçozinho, e vou cozinhar sim.
Cozinhar é um dom que vem da mãe?
- Talvez seja, talvez...
Quer deixar alguma mensagem?
Esta pequena conquista não tem a ver só com o treinador, mas com a implicação destes jogadores, com a ajuda, o bom momento dos clubes, tem a ver com todo um staff que eu tenho, não só o que está ali mais perto do banco, mas todo o que rodeia a seleção, cada vez mais temos uma máquina bem montada, toda a gente faz a sua parte, toda a gente contribui para marcar mais um golo. O meu agradecimento a todos eles porque foram excecionais ao longo deste percurso todo.