"O exercício do jornalismo não se faz sem alguma angústia de não conseguir fazer tudo o que se gostaria. É necessário que todos o compreendamos" - A opinião de José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal
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Foi amplamente divulgado e comentado nas redes sociais o facto de a morte de Kobe Bryant ter sido capa de alguns jornais desportivos europeus e não o ser em Portugal. O assunto foi igualmente objeto de reflexão em Itália, onde a Imprensa desportiva optou por uma linha editorial semelhante à portuguesa.
O facto explicar-se-ia por estarmos perante realidades culturais distintas e, em Portugal, a morte prematura de um grande desportista mundial ter menos relevo do que os acontecimentos futebolísticos do fim de semana.
Não custa admitir esta tese. Mas é uma tese intelectualmente preguiçosa. E cujo resultado imediato é desencadear uma reação crítica de muitos jornalistas. E alguma razão lhes assiste.
Em primeiro lugar, é justo reconhecer que a comunicação social desportiva e a generalista têm dedicado ao tema várias páginas de grande qualidade, reveladoras da importância dada ao assunto. Pelo que tudo se parece resumir à questão da capa, e é óbvio que esse não é um assunto menor.
As capas são porventura o aspeto mais sensível de uma edição. Elas pretendem chamar a atenção de potenciais leitores para adquirirem o jornal.
Os jornais são operações comerciais e as capas são construídas em função do que pode alavancar as respetivas vendas. E, para os editores responsáveis nos jornais desportivos, venderia mais uma imagem do futebol caseiro que a morte de uma estrela do desporto mundial.
O que nos podemos interrogar é qual a razão por que, noutras circunstâncias, como ainda recentemente ocorreu em pelo menos dois jornais, com a morte do Paulo Gonçalves, tal princípio foi ultrapassado em nome de valores humanos mais relevantes e agora o não foi.
Não sabemos como responder à questão. Sabemos que prevalece, no seio da generalidade dos órgãos de comunicação social especializada, uma cultura monotemática muito hegemonizada pelo futebol. Mas também não devemos ignorar que as redações não são espaços de unanimismo e muitos jornalistas, sobretudo ligados às modalidades, lutam para que os seus trabalhos tenham uma outra visibilidade. Umas vezes com êxito, outras não. Mas não reconhecer esse esforço é profundamente injusto.
É isto uma inevitabilidade? Mais do que lançar anátemas sobre os jornalistas, talvez seja de refletir sobre o contexto em que desenvolvem o seu trabalho, marcado pelas profundas alterações impostas pela digitalização, que aceleraram o aparecimento de modernas formas de consumo de informação, fundadas num novo modelo ainda incapaz de suportar o negócio.
Os jornalistas vivem atualmente numa crise sem precedentes, refletida em redução de efetivos nas redações, despedimentos, rescisões, salários baixos, precarização, recurso a mão de obra pouco qualificada. Garantir o posto de trabalho é hoje, para muitos jornalistas, uma questão elementar. E aí não há espaço para muitas aventuras. Mas, paradoxalmente, nunca como hoje tiveram um papel tão relevante no escrutínio da sociedade, pelo que se trata de uma profissão de elevado grau de responsabilidade pública.
O que fizeram e o modo como reportaram o acontecimento foi positivo. Não faltarão oportunidades para ir ainda mais longe.
A progressiva privatização das empresas de comunicação social, a apropriação do capital social dessas empresas por grupos económicos, a depauperização e redução da qualidade da comunicação social pública, a adoção de mecanismos de condicionamento económico onde o mercado se constitui como espaço regulador dos princípios da concorrência transformaram o jornal, a rádio e a televisão num produto comercial.
Numa economia de mercado, a supressão ou reconversão de um produto opera-se quando a oferta deixou de corresponder à procura. Como produto comercial, é produzido para ser vendido num contexto concorrencial cada vez mais difícil e sujeito à lei da oferta e da procura. O que ajuda a explicar que o desporto representado pelos média desloque o centro da sua atenção para uma narrativa que é, no nosso país, predominantemente representada pelo futebol. Os jornalistas não podem ser responsabilizados por estas derivas.
Mas, dito isto, é preciso afirmar que a cultura desportiva de um país também é feita pelos jornalistas, pois não é só no plano etimológico que é inseparável do exercício de informar o consequente impacto em formar audiências.
Os jornalistas não são recetores passivos do que escrevem, relatam ou filmam, na mesma medida que não são os leitores, ouvintes ou telespectadores. Os jornalistas escolhem, selecionam, noticiam e opinam.
Ao modo como o fazem não são indiferentes os seus conhecimentos e a ética de responsabilidade social que colocam ao serviço da profissão. Muito do conhecimento que elaboramos sobre os factos está condicionado por aquele trabalho. A opinião pública tende por isso a ser cada vez mais a opinião publicada.
É, pois, de esperar uma comunicação social sociologicamente mais comprometida com o país desportivo (com todo ele e não apenas com o futebol), à qual deve caber um papel essencial na análise e avaliação da realidade desportiva, que não dispensa uma visão da realidade global do fenómeno desportivo e dos seus protagonistas.
Por isso, o que se espera é que nestas alturas possa assumir o papel que o mundo do Desporto espera dela, dando os sinais certos no dia certo.
A palavra escrita e publicada é algo que resiste à voragem do tempo e a capa de um jornal retratando um ícone desportivo ainda mais: fica para sempre no imaginário coletivo.
Kobe Bryant era um ícone do desporto mundial. Uma referência para quem gosta e admira o desporto. No meio do infortúnio, teria sido uma cintilante estrela encontrar um órgão de comunicação social desportivo nacional a entregar a capa da respetiva edição à sua figura.
O que fizeram e o modo como reportaram o acontecimento foi positivo. Não faltarão oportunidades para ir ainda mais longe. O exercício do jornalismo não se faz sem alguma angústia de não conseguir fazer tudo o que se gostaria. É necessário que todos o compreendamos.