Campeã da WNBA e Hall of Famer, Ticha Penicheiro teve uma carreira sem paralelo, mas diz a O JOGO nunca ter sentido "tanto orgulho em ser portuguesa como agora", na resposta do país à covid-19
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O descontrolo do novo coronavírus nos Estados Unidos, onde trabalha como agente de jogadoras, fez a melhor basquetebolista portuguesa de todos os tempos voltar temporariamente ao país natal. Aos 45 anos, Ticha Penicheiro está na Figueira da Foz e é lá que se sente mais segura.
Foi a crise pandémica que a fez voltar?
Costuma ser a altura em que estou mais ocupada, mas está tudo parado com esta situação do coronavírus. A minha família, e sobretudo a minha mãe, estava cada vez mais preocupada por estar sozinha nos EUA. Fui sempre adiando, adiando... Quando percebi que a TAP fazia um último voo direto entre Miami e Lisboa a 31 de março, decidi vir. Agora não sei quando volto.
Está em teletrabalho?
Sim, mas a fazer exatamente o mesmo que faria se estivesse lá. A única diferença agora é que estou cinco horas adiantada. Disse a todas as minhas jogadoras e à minha agência, que me deu autorização para vir, que têm de ter em consideração que, às vezes, pode ser mais complicado responder a mensagens, posso estar a dormir, mas tem sido o trabalho normal. Há muitas questões a que não sabemos responder: se vai haver WNBA, o que vai acontecer na Europa e nos outros países, quando recomeça, se vai ser seguro, se podem entrar os adeptos...
A última ligação aérea da TAP entre Miami e Lisboa estava prevista para 12 de abril, mas a suspensão dos voos acabou por ser antecipada, levando Ticha a decidir-se pelo regresso a Portugal
Esta indefinição está a causar ansiedade nas jogadoras que representa?
Por um lado, é ansiedade; por outro, a incerteza do sistema financeiro e económico, pelo facto de não estarem a receber. São jogadoras profissionais e recebem por jogar basquete. Na Europa, tivemos de cancelar contratos de muitas jogadoras para elas voltarem a casa e estarem com as famílias. Desde esse dia que não estão a ganhar mais nada. Se não jogarem na WNBA ou em outro sítio, não vão receber.
Como reage ao ouvir os discursos do Donald Trump?
Nunca tive tanto orgulho em ser portuguesa como agora. O nosso Governo e Presidente da República estão a fazer um trabalho de liderança que não tem nada a ver. Não há comparação nenhuma com o presidente dos Estados Unidos. Nunca fui fã dele, mas, neste momento, o que ele diz é chocante. Pensei que já tinha ouvido tudo e não havia nada mais que pudesse dizer que me chocasse, mas ultimamente é incrível a falta de liderança. Aquilo é como um jogo para ele, quer o protagonismo, tem um ego enorme, quer estar em frente às câmaras... O que diz é inconcebível. Não sei como o deixam falar. No outro dia, percebi pela CNN que estavam a tentar que ele não viesse falar mais ao povo americano, porque cada vez que fala se enterra mais. Os americanos precisam de um líder que lhes dê segurança e ele não é essa pessoa.
Como está o panorama em Miami, onde vive?
Eu vivo em Miami, mas não na parte turística. Antes de vir embora, estava calmo. Foi dada uma ordem executiva de estar em casa. Eu podia sair por causa da minha cadela, ia ao supermercado e pouco mais, porque realmente temos mesmo de nos saber separar, é a maneira de conter o vírus.
"Se há um lado positivo neste momento, é poder estar em casa com a família e na cidade que me viu crescer"
>> "Há anos que não estava cá mais de 25 dias"
Com tardes mais atarefadas do que as manhãs, porque "é quando os Estados Unidos estão a acordar", a antiga internacional portuguesa conta como tem passado os dias, "todos muito iguais". A noite do Draft virtual da WNBA foi exceção e até o pai assistiu!
O que tem feito na Figueira da Foz?
Não me lembro da última vez que estive aqui mais de 25 dias, devia ter uns 15 ou 16 anos... Se há um lado positivo neste momento, é poder estar em casa com a família e na terra que me viu crescer. Os dias são muito iguais, quase nem sei que dia é que é, mas tento, quando o tempo ajuda, sair todas as manhãs com a cadela e depois vou fazer o meu exercício, para o bem físico e mental. Saio um pouco, com precauções, às vezes com máscara. A Figueira é uma cidade pequena, temos 30 mil habitantes, é fácil andar pelas ruas sem haver muita gente. Depois chego a casa, leio... Durante a tarde, estou mais ocupada, é quando os Estados Unidos acordam e eu tenho mais trabalho. Mas têm sido dias relaxantes e, de facto, há que aproveitar enquanto estou aqui com os meus pais.
Como foi a experiência do Draft da WNBA virtual?
Acompanhei com o meu pai. Estive a ver até às duas e meia ou três da manhã. Tinha cinco jogadoras este ano e curiosidade em saber para onde iam jogar. Também estava a apoiá-las em algumas perguntas que tivessem. Foi uma noite divertida, porque há muito tempo que não tínhamos nenhuma espécie de desporto ao vivo. Embora fosse virtual, foi o suficiente para nos alegrar, principalmente os fãs do basquetebol.
Acredita que ainda vamos ter WNBA e NBA esta época?
As duas ligas estão a fazer por isso, os fãs do basquetebol, do desporto, nos EUA e no mundo inteiro, precisam de algo positivo. Estão a tentar encontrar a solução que faça sentido, que seja segura para a saúde de todos os jogadores, treinadores... Se vai ser a ideal, não sei. Quase de certeza que vai passar por não haver adeptos nos jogos, mas eles serem televisionados, o que já é bastante bom.
E também pode ser tudo concentrado num sítio?
Sim, tem de passar por aí, mais até na WNBA do que na NBA. Na WNBA não se voa em privado, são voos domésticos e voar com outras pessoas só aumenta as hipóteses de contágio.
CURTAS
Quarentena à chegada à Figueira
Ao decidir-se pela viagem para Portugal, Ticha Penicheiro teve de tratar de tudo "um pouco mais à pressa", mas sem grandes problemas burocráticos. "Foi tranquilo. O voo não estava muito cheio, as hospedeiras tinham todas máscara e eu tive os cuidados. Ao chegar à Figueira da Foz, estive de quarentena, sem estar ao pé dos meus pais, porque não os queria pôr em risco", conta.
Dupla nacionalidade facilita no regresso
Desde 14 de março que as fronteiras com a Europa estão encerradas, mas Ticha poderá regressar aos Estados Unidos quando entender e sem percalços, pois tem dupla nacionalidade desde 2013. "Eles levantam mais problemas com quem não tem a cidadania. É normal que surjam mais questões, de onde venho, o que vou fazer e que tenha de estar de quarentena em casa. Mas vinda de Portugal... Estou mais segura do que eles."
Um pleno no Draft da WNBA
Na edição deste ano, que foi virtual, a portuguesa era representante de cinco jogadoras, tendo todas sido selecionadas: Bella Alarie (Princeton) em quinto para Dallas, Megan Walker (Connecticut) e Kylee Shook (Louisville) em nono e 13.º, respetivamente, para New York; Kathleen Doyle (Iowa) em 14.º para Indiana, e Stella Johnson (Rider) em 29.º para Phoenix.
Sabrina Ionescu era questão de tempo
Na seleção das 36 melhores universitárias deste ano, a romena Sabrina Ionescu foi escolha número um sem surpresas, pelas New York Liberty. "Havia 99,9 por cento de certezas, era uma questão de ser oficial. Ela podia ter saído para a WNBA no ano passado, tomou a decisão de voltar para a universidade [Oregon] para tentar ganhar o campeonato da NCAA e afinal não teve oportunidade de o fazer... Mas ela teve uma carreira universitária e impressiona pelo que faz no campo", comenta Ticha sobre a protegida de Kobe Bryant.