Iúri Leitão fala de forma apaixonada de omnium e madison, provas que além da performance física... obrigam a pensar. Dupla portuguesa venceu o madison a 60,18 km/h, a média mais alta da história, e o esforço impressionante tinha sido ensaiado em Anadia. No omnium, insiste, nunca tiraria o ouro a alguém no chão.
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Poucos portugueses conhecem as provas de pista, mas já há muitos interessados. E o campeão olímpico fala dos detalhes que justificam ir vê-lo.
O omnium é difícil por ser a soma de quatro provas, mas o Iúri tem regularmente grandes resultados. Qual é o segredo?
-A tranquilidade. Nós trabalhamos muito, portanto temos de estar bem. Também podemos ter azar. Tive uma queda antes dos Jogos Olímpicos [fraturou um dedo], que por acaso não me afetou a preparação, mas podia ter afetado. Aquilo em que me foco é fazer o melhor trabalho possível, para chegar à competição com a consciência tranquila. A partir daí é competir com aquilo que temos e tentar aplicar a melhor tática possível. Ou seja, o realmente importante é o trabalho, não é o dia. Porque na competição só temos de evitar de fazer erros, de ficar em má posição e depois jogar com os adversários, perceber o que eles estão a fazer. Tudo isso é minucioso e requer atenção, mas estamos ali para isso. Não estamos a tomar café com amigos. Os resultados têm sido bons, não sei se vão continuar a ser. Espero que sim.
Isso significa que é preciso ser inteligente e pensar muito durante as provas?
-Acho que pensar é mais necessário do que estar bem fisicamente. Já consegui, em várias ocasiões, fazer bons resultados com poucas balas. Este ano ganhei o Campeonato da Europa e tinha estado duas semanas de cama, doente, antes de ir. É importante estar sereno, mas isso também se treina. O conseguir pensar quando vamos no limite, ter o discernimento de entender o que está a acontecer, não entrar em pânico quando não acontece como queremos. Porque muitas vezes só temos de saber esperar pela hora certa. Isso requer tempo, paciência e muita análise. Geralmente conta mais do que as pernas.
O madison é a maior prova, a mais importante?
-Sim, a par do omnium. O madison tem uma característica que o faz especial: temos um colega. Enquanto no omnium vou por mim e pelo país, ali tenho de dar tudo pelo colega. Dou um exemplo: eu tive duas oportunidades de fazer bons resultados, o Rui só teve uma. Não o podia deixar ficar mal. Muitas vezes não estamos no nosso melhor dia - e eu não estava nesse sábado -, mas não podemos baixar os braços. Eu não podia deitar todo o trabalho do Rui ao lixo só porque já tinha uma medalha e não me estava a sentir bem. É uma prova que requer muito companheirismo, altruísmo, temos de pensar mais no colega do que em nós e esperar que ele faça o mesmo.
Diz isso porque puxam à vez?
-Podia simplesmente render com o Rui, ele ir para dentro da corrida e eu ficar mais tempo a descansar. Mas ia estar a matá-lo. Tenho de recuperar o mínimo possível, para que ele se canse o mínimo possível, e ele fazer o mesmo por mim. É a camaradagem que faz o madison especial.
Tem noção de que os portugueses estão eufóricos, mas a maioria não percebe a corrida?
-Quase ninguém percebia, porque cada vez mais pessoas percebem e perguntam. E se perguntam é porque têm interesse. Nisso os comentadores têm um grande papel, o de saber explicar, sobretudo nuns Jogos Olímpicos, onde o mediatismo é muito maior. Mas são provas complexas, é verdade.
Talvez impressione mais saber-se que vocês ganharam o ouro com 18,4 quilómetros a puxar e a uma média superior a 60 km/h.
-É verdade. Aqueles 50 quilómetros foram frenéticos, saiu muito rápido e a primeira metade foi à média de 62 km/h. A tendência é abrandar na parte final, quando já há a fadiga, mas nós fizemos questão de não deixar. Foi quando fizemos a nossa jogada final e demos a volta ao resultado.
Essa média de 60,181 km/h saiu muito do vosso corpo. Foi dos maiores esforços da vossa carreira?
-Foi dos maiores esforços da nossa carreira, mas já falei disso com o Rui, que sentiu o mesmo que eu: chegámos a um ponto em que estávamos quase em transe, não sentíamos nada. Só pensávamos no que tínhamos que fazer e continuávamos. Doíam as pernas, a respiração ia muito rápida, mas não sentíamos nada. Era puxar, puxar, puxar...
Tinham de dar uma volta de avanço ao pelotão...
-Exatamente. Tínhamos treinado isso mesmo. Fizemos um treino específico antes dos Jogos, com muito tempo atrás da moto - que simula o pelotão - e depois 26 ou 27 voltas de gás a fundo, como costumámos dizer. Quando nos vimos naquela situação, nem precisei de falar com ele, entendemos logo que era aquilo que tínhamos treinado. Não olhámos para trás. Simplesmente continuámos, ganhámos os sprints que precisávamos, dobrámos o pelotão, respirámos fundo e fizemos o sprint da última volta.
A última volta decidia o ouro e o Iúri atacou logo para deixar Itália e Dinamarca...
-Sabia que era eu a fazer o último sprint. Acelerei o suficiente para render com o Rui, tendo as últimas duas voltas para fazer volta e meia de sprint. A partir daí foi o sprint da minha vida. Fiz a minha volta mais rápida de sempre.
A que velocidade?
-Foi uma velocidade média de 73 km/h.
É impressionante, aquilo é plano...
-É impressionante, sim. Nunca tinha feito nada assim.
Vocês dão as mãos e puxam um pelo outro a 60 km/h. Não é perigoso?
-A velocidade é normalmente superior a essa. É perigoso, aliás há algumas quedas. Os italianos caíram assim e outras seleções já tiveram problemas semelhantes. Mas é perigoso até certo ponto. Quanto mais se treinar e se aperfeiçoar, melhores são as rendições, sobretudo se em prova soubermos pensar na segurança... Por acaso falei disso com o Rui. Decidimos que íamos correr sem riscos, para sair tranquilos e sem quedas.
Já caiu muitas vezes?
-A fazer madison já caí duas vezes na mesma prova. Felizmente não temos muitas quedas, não é recorrente nós cairmos.
Mas há muitas quedas no madison?
-Nas últimas provas nem por isso. Mas quando a fadiga se instala, passa a ser difícil ter discernimento. Às vezes nem vemos muito bem. Acho que foi isso que aconteceu nestes Jogos Olímpicos. Havia tanta fadiga, a prova foi tão rápida, estava tanto calor, que já não havia discernimento e os ciclistas começaram a ter quedas por causa disso. Técnica não lhes faltava, eram os Jogos Olímpicos, são todos atletas de alto nível.
“Foi a prova da nossa vida e a mais rápida de sempre”
“Foi a prova em que aplicámos toda a nossa sabedoria. Foi, também por isso, a prova mais rápida da história”, sublinha Iúri Leitão sobre o ouro ganho no madison, com um recorde mundial (não oficial) de quem estava “a estrear-se nos Jogos”. “É interessante, se andarmos um pouco para trás, até 2018 ou 2019, Portugal não acabou o Mundial, porque não tinha capacidade. Fomos eliminados em poucas voltas. Num espaço tão curto, somos campeões olímpicos! Foi o melhor dia das nossas carreiras”, conclui.