<em><strong>O MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL</strong></em> - A incrível maratona dos Jogos Olímpicos de 1904 e do seu indiscutível vencedor: Thomas Hicks, o latoeiro que a estricnina consagrou.
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Pensando bem, o filme talvez até nem devesse ser sobre o singular feito (chamemos-lhe assim) de Thomas Hicks. Devia ser sobre a corrida, talvez o certame todo. Na verdade, nada foi normal naqueles que a organização chamou Jogos da III Olimpíada e a história guardou como Jogos Olímpicos de Saint Louis 1904.
O vencedor foi Thomas Hicks. Mas a história de como Hicks venceu é mais do que a história de um triunfo.
Organizada como um evento anexo à Exposição Mundial de Saint Louis, no estado norte-americano do Missouri, a competição começou por enfrentar problemas de natureza geopolítica. A Guerra Russo-Japonesa, um dos antecedentes da Primeira Guerra Mundial, dificultou a circulação por todo o planeta e, chegado o dia, apenas 62 dos 651 atletas inscritos para as provas eram de fora dos EUA e do Canadá.
A Maratona, essa, foi um caos. Corrida sob uma temperatura de 32 ºC, em sucessivos troços de terra batida e sulcada de que os veículos de apoio faziam levantar enormes nuvens de poeira, teve como único ponto de reabastecimento um poço de que tinham de ser os próprios atletas a extrair água.
Os relatos falam de corredores que tiveram de parar para apanhar maçãs em pomares e até fazer uma rápida soneca. Resultado: dos 32 inscritos à partida, chegaram ao fim escassos 14 e apenas três homens antes das quatro horas de corrida, quase o dobro das marcas atuais. Se for preciso encontrar méritos naqueles dias, talvez acabemos reduzidos a dois: o facto de terem competido pela primeira vez dois atletas negros, os sul-africanos Len Tau (9.º) e Jan Mashiani (12.º); e a criação do atual medalheiro, com ouro para o vencedor, prata para o segundo classificado e bronze para o terceiro. Isso e, talvez, o despertar do mundo para a necessidade de combater o doping.
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Dado o tiro de partida para a corrida de 42,195 km - na verdade, naquela altura, apenas 39,99 km, mas isso é outra história ainda -, havia dois favoritos: Frederick Lodz, um assentador de tijolos de Nova Iorque, que viria a ganhar a Maratona de Boston de 1905; e Thomas Hicks, um latoeiro radicado em Cambridge, Massachusetts, que havia imigrado de Inglaterra e, entretanto, fora capitão da equipa de corta-mato da YMCA de Minneapolis, cidade do Minnesota onde estivera a trabalhar durante alguns anos.
Lodz seria o primeiro a cortar a meta, mas isso apenas lhe valeria o epíteto de batoteiro: sentindo-se exausto ao fim das primeiras nove milhas, viajou de carro até cinco milhas do fim, na suposta intenção de desistir, mas então decidiu apear-se e correr o resto da distância. Primeiro aplaudido e pouco depois apupado, ainda alegou tratar-se de uma brincadeira, só que ninguém achou graça.
O vencedor foi Thomas Hicks. Mas a história de como Hicks venceu é mais do que a história de um triunfo.
O latoeiro partiu na frente, com boa passada, só que ao fim de algum tempo o calor, a poeira e a desidratação tomaram conta dele. Assistido por dois socorristas, foi então tratado com um extraordinário cocktail medicinal: 1 mg de estricnina, veneno conhecido por provocar pequenas convulsões musculares quando administrado em pequenas doses, e um copo de brandy, para descontrair. A ideia era fazê-lo recompor-se e apaziguar-se com a ideia da desistência, mas Hicks sentiu-se melhor e retomou a corrida. Ao fim de mais alguns quilómetros, extenuado de novo, voltou a chamar os socorristas: queria mais daquilo que eles lhe tinham dado, e eles deram-lho. E foi assim que chegou ao final - em primeiro lugar, com 3:28:53, seis minutos à frente do franco-americano Albert Corey e quase vinte do americano Arthur Newton.
Thomas Hicks não se importou. Nunca mais a usou, mas continuou a correr maratonas, voltando a vencer num meeting da Amateur Athletic Union, em Chicago, em 1906.
É o primeiro caso de doping conhecido (e assumido), e a ele remontam as preocupações que trouxeram o desporto até à atual cruzada de combate. Alcaloide cristalino mais tarde celebrizado nos romances de Agatha Christie (e não só), a estricnina pode matar em doses a partir dos 35 mg e mata sempre em doses a partir dos 100 mg. Não é uma morte bonita: os músculos entram em convulsões, depois em espasmos e finalmente em paralisia, o que leva à morte por asfixia.
A substância foi proibida no desporto pouco depois daquela edição dos Jogos Olímpicos por violar todas as três proibições definidas pela hoje chamada Agência Mundial Antidopagem: a melhoria artificial do desempenho desportivo, os riscos para a saúde do atleta e a traição aos ideais do desporto.
Mesmo assim, nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, o voleibolista chinês Wu Dan acusou estricnina. E nos do Rio de Janeiro, ainda não há três anos, o halterofilista do Quirguistão perdeu a medalha de bronze, que chegou a receber, por ter acusado positivo também.
Thomas Hicks não se importou. Nunca mais a usou, mas continuou a correr maratonas, voltando a vencer num meeting da Amateur Athletic Union, em Chicago, em 1906. Trabalhou como latoeiro durante mais de década e meia ainda. Nos anos 1920, os seus dois irmãos mudaram-se para Winnipeg, na província canadiana de Manitoba, e ele acabou por segui-los. Naturalizou-se canadiano e trabalhou até à aposentação nas minas de Ingolf, no Ontário. Viveu até aos 76 anos. Guardou até ao último dia a sua medalha de ouro - a primeira medalha de ouro na maratona alguma vez entregue nuns Jogos Olímpicos.