A evolução do futsal feminino em Portugal: "Hoje em dia não existe o pagar para jogar"
A era de Fernando Gomes na FPF conta com a conquista de 15 títulos internacionais, mas falta levar o feminino ao Palácio de Belém. O futsal pode concretizar esse desejo, no Europeu que se realiza entre 25 e 27 de março, em Gondomar. Para chegar ao estatuto de potência do Velho Continente houve bastante trabalho e há muito mais para fazer...
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"Não ficaria muito bem se não trouxesse aqui [Palácio de Belém] o primeiro título de uma modalidade coletiva feminina até ao fim do mandato. E tudo faremos para o conseguir". A frase foi de Fernando Gomes, na receção aos bicampeões europeus de futsal masculino, em Belém, na passada terça-feira, e no pensamento do líder da Federação Portuguesa de Futebol estará, com certeza, o segundo Campeonato da Europa de futsal feminino, que se realiza entre 25 e 27 de março, em Gondomar.
De facto, ganhar títulos passou a ser algo habitual desde que a equipa diretiva de Gomes assumiu as rédeas da FPF, mas, lá está, falta que os troféus cheguem ao feminino. Ora, no futebol, essa distância para o sucesso é mais longa do que no futsal.
Organizado pela primeira vez, sob a chancela UEFA, em 2019, o primeiro Campeonato da Europa de futsal entre mulheres coroou a Espanha como campeã e Portugal ficou com a prata. Lusas e castelhanas são as principais potências do velho continente e isso faz com que o desejo de Fernando Gomes seja perfeitamente alcançável para um Europeu porque, falando de um Mundial, a história é outra.
Mas houve um longo caminho a percorrer até ao panorama atual, onde o futsal feminino se afirma cada vez mais como uma modalidade acessível a qualquer menina/mulher que o queira praticar. Apesar de ainda haver muito a fazer, a evolução é notória e resumida nas próximas linhas.
Dos ringues ao ar livre até ao primeiro campeonato
Foi em 1997 que a FPF fundiu o futebol de cinco com o futsal. Catarina Câncels Cardoso, retirada em 2015/16 e hoje com 44 anos, ainda é desse tempo de ringues... ao ar livre. "Treinávamos e jogávamos com sol ou chuva. Eram muito poucas as equipas que jogavam em pavilhão", recorda.
Por outro lado, os quadros careciam de... competitividade. A Taça Nacional concentrava os campeões distritais de cada associação, começava por volta de abril/maio e acabava em junho. Só em 2013/14 surgiu a primeira edição da Liga de futsal feminino.
Esta época, o campeonato passou a ser disputado sem séries (norte e sul), com 14 equipas, e na temporada anterior criou-se a II Divisão Nacional.
Além disso, há, também, a Taça de Portugal, a Supertaça e a Taça da Liga, surgiu o nacional de sub-19 e mantém-se a Taça Nacional, que agora serve para apurar as quatro equipas que sobem ao segundo escalão.
Viver do futsal ainda é para poucas
Viver com o que se recebe do futsal é para muito poucas ou mesmo nenhumas em Portugal. No entanto, a realidade até melhorou. "Com os meus 14/15 anos jogava logo com as seniores porque não havia escalões de formação. As deslocações para os jogos eram em carro próprio, com colegas mais velhas. Era a altura da carolice. Quando comecei a treinar, no Caxiense, tinha dois treinos por semana", relata Catarina Cardoso.
Ana Azevedo, capitã da Seleção Nacional, é uma empresária de sucesso no ramo dos cosméticos e ainda hoje não anda na modalidade pelo dinheiro. "Comecei por ganhar zero e continuo a ganhar zero", explica. "É algo a melhorar, mas não é fácil aos clubes predispor desse dinheiro para fazer do futsal feminino profissional", completa.
O passo a dar não é, sequer, legalmente fácil. Em Portugal, apenas a Liga Bwin e a Liga SABSEG têm o estatuto de provas profissionais. O passado diz que, por exemplo, a tentativa de o basquetebol se profissionalizar durou pouco e não resistiu. Para conseguir esse sonho, resta às portuguesas emigrarem, como foi o caso de Fifó e Janice, que saíram do Benfica, onde ganhavam tudo internamente, para rumarem Città di Falconara (Itália).
Jenny está no Burela Pescados (Espanha) desde 2017 e as diferenças são muitas, apesar de também elas serem uma exceção à regra. "Quando saí de Portugal, ganhava cento e poucos euros. Agora, uma jogadora internacional pode ir até aos 300. Depende muito. Há jogadores a receber mais, não sei se chega ao salário mínimo, mas ainda não é possível viver do futsal", refere Jenny.
O Burela é uma espécie de oásis. "É o único clube profissional em Espanha. Temos contrato de trabalho, segurança social e mais ninguém faz isto. Temos seguro de vida e de invalidez também. Se ficarmos grávidas, renova automaticamente, estamos seguras a esse ponto. Aqui como temos esse contrato, põem o salário mínimo de 1000 euros, depois, consoante prémios pode variar", revela.
Em Portugal, trabalhava numa loja de roupa desportiva e estar nos jogos era uma "luta" devido aos horários. Apesar de não colocarem entraves, Jenny "pedia férias" para ir à Seleção e, assume, a vida pessoal "ficava para trás". Além disso, em Espanha treina sete vezes por semana. Quando saiu do Sporting, fazia três treinos.
Na Seleção, a sub-capitã Inês Fernandes é médica, Ana Catarina, melhor guarda-redes do Mundo para o portal Futsal Planet, estuda finanças empresariais, Cátia Morgado é optometrista, Pisko técnica de radiologia, Sara Ferreira está ligada à indústria hoteleira e Carla Vanessa é costureira. Isto só para falar das principais figuras da equipa.
Todavia, a FPF melhor muito o panorama. "Em 2010, quando fomos pela primeira vez a um torneio Mundial, juntámo-nos uma semana antes e depois fomos para Espanha jogar. Agora não é assim. Temos vários estágios e jogos internacionais. Quanto mais competição houver, mais preparadas estaremos", sublinha Ana Azevedo. "Hoje em dia não existe o pagar para jogar. Há uns anos, havia atletas que tinham de pagar os equipamentos, fatos de treino e às vezes até deslocações", lamenta a jogadora do Vermoim.
Apoios à Liga e a influência das escolas
Para que o futsal feminino cimente cada vez mais a sua posição, a FPF deu outro passo importante recentemente. Criou um programa de apoio aos clubes que participam na I Divisão, à semelhança do que acontece na Liga BPI (futebol feminino) e na Liga Placard (futsal masculino).
Assim, atribui aos clubes que são entidades formadoras uma determinada verba e podem beneficiar de um valor acrescido de 10 mil euros de apoio se tiverem: duas equipas de futsal entre os escalões de sub-13, sub-15, sub-17 e sub-19; uma equipa no Nacional de sub-19; duas jogadoras sub-20 formadas localmente em todos os jogos da prova; um treinador com habilitação mínima UEFA A/grau II.
Em Portugal, há mais meninas até aos 18 anos a jogar futsal no âmbito escolar do que em clubes federados. Alguns pontos do país só têm uma oferta enquadrada pela escola, por isso a margem de recrutamento é enorme. As inscrições de atletas federadas refletem-se (sobem consecutivamente desde 2014/15) e a FPF quer que esses números cresçam muito mais, pois ainda há bastante por explorar nos escalões etários mais baixos.
Falta um Mundial para dar "visibilidade"
"Quando for criado um Mundial de seleções e provas internacionais de clubes, isso será um chamariz para que as atletas optem mais pelo futsal". A opinião é de Ana Azevedo que acredita, aliás, que o ponto alto de qualquer atleta "é chegar à Seleção Nacional" e, por isso, a realização de um Mundial torna-se fulcral para o futsal "ter mais visibilidade".
Até agora, o mais próximo de uma competição desse nível foi a realização de um Torneio Mundial de Futsal Feminino, organizado pela FIFA, embora de forma não oficial. A prova aconteceu entre 2010 e 2015 e teve apenas um vencedor: o Brasil.
Curiosamente, o segundo lugar teve três seleções diferentes: Portugal (2), Espanha (2) e Rússia. Atualmente, essa prova já não é disputada e, aos olhos de Jenny, era importante para as seleções terem mais competitividade como existia nessa altura. "O Brasil, por exemplo, tem uma super seleção. Há muitos anos que não jogámos contra elas. Era importante ter essa diversidade e não jogar sempre com as mesmas equipas, isso ajudava às competições e a evoluirmos cada vez mais", atirou.
Já Catarina Cardoso, que pertenceu à primeira equipa da Seleção Nacional, acredita que há países que não apostam na modalidade "por não haver competições como o Mundial". Por isso, a aposta num Campeonato do Mundo podia ter a consequência positiva de "haver muitos mais países a apostar em seleções".
O primeiro passo já foi dado em 2019 com a criação de um Campeonato da Europa, luta-se, agora, por uma evolução sustentada que culmine no desejado Campeonato do Mundo. A FIFA está atenta, mas falta competições continentais na América Central e Caribe e em África. Será, à partida, uma questão de alguns anos mais de espera...
Três questões a Pedro Dias, diretor para o futsal da FPF
1 - Se pudermos fazer esta comparação, diria o futsal feminino é uma criança em crescimento?
-Estamos sempre a tentar aumentar o número de praticantes e clubes. A fusão do futsal com o futebol de cinco na FPF ocorreu há 25 anos, em 1997. Ou seja, com 25 anos já atingimos a idade adulta. Estamos a crescer, porém podemos e devemos aumentar o número de praticantes, nomeadamente nas etapas iniciais da formação, em alguns escalões onde ainda não temos uma oferta por todo o país que permita a meninas dos seis aos dez anos anos se iniciem na modalidade.
2 - O que há para fazer nos próximos anos?
-A FPF, as associações e os clubes devem aumentar o número de praticantes. Esperamos ter uma oferta regional e local de competições de formação de futsal feminino, ou seja, campeonatos sub-11, sub-13, sub-15, sub-17 e sub-19 e depois estruturar os quadros competitivos quando essa oferta se justificar em termos do número de praticantes e associações.
3 - Falta um Mundial com chancela oficial FIFA para que o futsal feminino cresça ainda mais?
-É um passo que vai acontecer. A FIFA tem feito uma aposta no futsal feminino, o futebol foi a prioridade porque é onde existem mais praticantes. A UEFA organizou pela primeira vez um Europeu feminino em 2019, temos algumas confederações que não têm competições de seleções e isso tem que ser feito de forma articulada. Um Mundial é um próximo passo a dar em próximas competições da FIFA, mas tem que ser acompanhado em África e na América Central e Caribe. Na Ásia, Europa e América do Sul temos essas competições continentais.