Pela primeira vez capitaneada por um jogador negro, a África do Sul arrasou a Inglaterra e venceu o Mundial
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Diretamente de Yokohama, no Japão, para os livros de história, a África do Sul virou os prognósticos do avesso e não deu hipóteses à Inglaterra na final do Mundial de râguebi: 32-12. Os springboks igualaram a Nova Zelândia como equipa com mais títulos, depois de terem vencido em 1995 e 2007 e esse primeiro triunfo foi reavivado por todos, tal o simbolismo que a conquista de ontem teve. Pela primeira vez, a seleção africana é capitaneada por um jogador negro, Siya Kolisi, a quem coube a honra de levantar a taça Webb Ellis, 24 anos depois de Nelson Mandela, equipado a rigor, ter posto o troféu nas mãos de François Pienaar, capitão na final de Joanesburgo.
O lendário presidente da África do Sul viu no râguebi o espaço ideal para unir uma sociedade partida ao meio pelos 46 anos de apartheid. A seleção, apenas acessível a brancos, era um exemplo de segregação, de tal forma que os negros até torciam pelas equipas adversárias, mas transformou-se na representação mais sólida de diversidade e união num país ainda ferido. Chester Williams era o único negro naquela equipa de 1995 e havia dois entre os campeões de 2007, mas agora entre os 31 jogadores convocados por Rassie Erasmus, 11 são negros e sete constaram nos 23 da ficha de jogo.
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Esfumou-se o sonho do império inglês
A história de 1995 deu origem ao filme Invictus, com Morgan Freeman e Matt Damon, e esta final pareceu saída de um guião por vários motivos, além dos que já elencámos. Depois de ter batido a Nova Zelândia nas meias-finais, a Inglaterra era apontada como favorita, por entre os avisos em surdina de que os sprinboks transcendem-se em contextos assim. Pubs abertos às oito da manhã, cerveja ao pequeno-almoço e um país parado e esperançado em esquecer a odisseia do Brexit por um dia. Mas os maus presságios rapidamente ganharam forma: a viagem atrasou-se e os ingleses chegaram ao estádio já a uma hora do início, Kyle Sinckler saiu de jogo com uma concussão logo aos três minutos e a África do Sul adiantou-se. A superioridade foi total, lá se foi o sonho dos ingleses de triunfarem em 2019 nas modalidades que lhes são mais queridas: vencedores da Champions (Liverpool) e da Liga Europa (Chelsea), campeões do mundo de críquete pela primeira vez e na iminência de ver Lewis Hamilton carimbar o sexto título de campeão de Fórmula 1.
O que era uma equipa que representava a segregação, é hoje um exemplo de diversidade que puxa outra vez por um país com muitos desafios. Reaviva-se a cena icónica entre Mandela e Pienaar, em 1995
A inspiração para todas as outras lutas sul-africanas
"Nunca sonhei com um dia assim. Quando era criança só pensava quando poderia ter a próxima refeição. Temos muitos problemas no nosso país, mas uma equipa assim... temos raízes e raças diferentes, mas unimo-nos em torno de um objetivo, mostrámos ao país que podemos conseguir o que quer que seja se estivermos juntos", afirmou Siya Kolisi, que teve de assistir à final de 2007 numa tasca, porque não tinha televisão em casa. O discurso viralizou e mexeu com um país que enfrenta uma dura crise económica, com o desemprego nos 29%. Por isso, o treinador explicou aos atletas que estavam a jogar pelo país todo. "Na África do Sul, a pressão é não teres emprego ou veres um amigo ser assassinado. O râguebi não tem de ser algo que crie pressão, mas que traga esperança", vincou Rassie Erasmus.
Depois das vitórias do Liverpool na Champions, do Chelsea na Liga Europa, do triunfo no Mundial de críquete e da iminência do sexto título de Lewis Hamilton, só faltava o râguebi para um 2019 perfeito para os ingleses
HISTÓRIAS
Kolisi saiu da pobreza para a história
Siya Kolisi nasceu em Zwide, perto de Porth Elizabeth a 16 de junho de 1991, um dia antes do fim da classificação e registo das pessoas em quatro grupos raciais. Filho de pais adolescentes, perdeu a mãe aos 15 anos, dormia em almofadas no chão e muitas vezes não tinha o que comer. A capacidade para o râguebi valeu-lhe uma bolsa de estudo numa escola de prestígio e adotou os dois meios-irmãos. Ao 50.º jogo pelos springboks, ergueu o troféu de campeão do mundo, com o número 6 nas costas, o mesmo usado por Mandela e Pienaar. Na bancada estava o pai, que voou para o estrangeiro pela primeira vez na vida, mas que antes deu um salto...à Disneylândia!
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Rejeição das medalhas incomodou
Apesar da dureza e virilidade, impera o respeito e a lealdade no râguebi. A final de ontem não foi exceção, mas o facto de vários jogadores ingleses terem recusado ou imediatamente retirado a medalha de segundo classificado, não caiu bem e mereceu reparos dos adeptos.
Da cerveja matinal à oferta de internet
A cultura desportiva inglesa passa pelos pubs e nem o fuso horário - o jogo foi às 9h00 - mudou isso. Pizza e cerveja foi o pequeno-almoço de muitos, mas a festa saiu às ruas da África do Sul e uma das operadoras móveis ofereceu o serviço de internet aos seus clientes até ao final do dia de hoje.
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O QUE ELES DISSERAM
"Temos raças e raízes diferentes mas unimo-nos"
"Muitos de nós, na África do Sul, só precisam de uma oportunidade. Em criança, só pensava quando teria a próxima refeição. Temos muitos problemas no nosso país, mas aqui temos raízes e raças diferentes, mas unimo-nos e mostrámos ao país que podemos conseguir o que quer que seja se estivermos juntos. Desde que sou vivo, nunca vi a África do Sul assim."
Siya Kolisi - Capitão da África do Sul
"Pressão é veres um amigo a ser assassinado"
"Na África do Sul, a pressão é não ter emprego ou ver um dos teus amigos ser assassinado. O râguebi não deve ser algo para criar pressão, mas sim para trazer esperança. Há tantas coisas boas na África do Sul, mas parece que olhamos para todas as coisas más. Decidimos que nos íamos unir e trabalhar muito no campo, que depois as coisas haveriam de funcionar."
Rassie Erasmus - Treinador da África do Sul
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"Pensávamos que a preparação tinha sido boa, mas não"
"Não sei porque não jogámos bem e isso acontece em alta competição. Pensávamos que a nossa preparação tinha sido boa.. Estamos muito desiludidos, mas também não consigo expressar o quanto respeito estes jogadores. Agora vamos beber umas cervejas e amanhã outras mais e se calhar na segunda também. Somos os segundos melhores."
Eddie Jones - Treinador de Inglaterra