Justin Fashanu venceu o preconceito racial e foi dos primeiros negros de sucesso no futebol inglês. Não conseguiu foi superar outra perseguição
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Justin não teve uma carreira avassaladora, mas a sua vida é profundamente lembrada. Suicidou-se em 1998 com 37 anos. Proeminente avançado do futebol inglês, internacional pelas seleções jovens entre 1980 e 1982, lançado pelo Norwich na Premier League em 1979, num jogo contra o WBA, esteve envolvido numa transferência bombástica para o Nottingham Forest em 1981, entrando no universo de Clough e de um clube com brutais credenciais.
Era uma das maiores promessas em Inglaterra, cedo granjeara estatuto de goleador, aponta 29 golos pelos canários em duas épocas, um deles considerado o melhor da temporada contra o Liverpool, e rende um milhão de libras na sua saída, valor nunca antes pago por um futebolista negro. Inglaterra vivia no final dos anos setenta, ainda obscuros de partilha e integração. Viv Anderson havia sido o primeiro negro a chegar aos Três Leões em 1978. Fashanu, rapidamente, a partir da chegada ao Nottingham Forest torna-se um jogador escrutinado pela aparência e pelo estilo de vida, irrompem as especulações sobre a sua sexualidade e ele acaba por ser o primeiro jogador a assumir-se publicamente gay no futebol, fazendo-o numa entrevista em outubro de 1990, ao “The Sun”, o que voltou a ter dimensão de letras garrafais, representando uma libertação do atleta de um infindável falatório. A revelação acontece quando Fashanu procurava renascer em clubes menores de Inglaterra, além de passagens pela Austrália, Canadá, Estados Unidos, Suécia e Escócia, em que imagina evitar colisões frontais com rumores, na ânsia de respirar de forma menos vigiada. As ondas de choque, após a polémica entrevista, foram imediatas e o maior problema residiu na censura pública do seu irmão John Fashanu, famoso membro do Crazy Gang, do Wimbledon, onde era o mais musculado aliado de Vinnie Jones.
Vida do avançado lançado pelo Norwich tornou-se tumultosa a partir do momento que assinou pelo Nottingham Forest. Rumores cercaram-no, assumiu-se gay em 1990 e suicidou-se em 1998.
Duríssimo no campo mas carismático, John foi terrível para o irmão, acusando-o publicamente de ser uma vergonha para a família e garantindo que teria de saber viver com as consequências da entrevista. Antes da mesma ser conhecida, ainda terá tentado demover Justin das declarações, oferecendo-lhe avultada quantia de dinheiro. Nada evitou, o escândalo rebentou mesmo com confidências de vários encontros sexuais de Justin com parlamentares e figuras pop. A irmandade foi quebrada fatalmente, perdendo Justin um grande pilar, pois os irmãos, de origens guianeses e nigerianas, foram abandonados no divórcio dos pais, colocados num orfanato, até que foram adotados e acabaram por crescer em Norfolk, ao lado de Norwich.
Forbidden Games, de 2017, é o documentário que mergulhou na vida dos irmãos, particularmente de Justin, alvo de abusos raciais e homofobia durante grande parte da sua carreira. Se Justin viveu com preconceito, John foi obrigado a lidar com um sentimento mais complexo, acabando por admitir no documentário a forma menos hábil com que lidou com a pressão da situação, quando os rumores viraram certeza que o irmão era abertamente gay. Sentiu um debate ao seu estatuto de durão nas quatro linhas. Não foi só John a deixar um carimbo de reprovação, o mítico Brian Clough, o treinador que fez do Nottingham Forest campeão inglês e campeão europeu, quis Justin mas também lhe cortou as asas, ao descobrir fugas noturnas por lugares famigerados de reputação duvidosa, eram, assim, as vulgares sentenças da época. Clough ter-lhe-á dito, quem “quem quer pão, vai à padaria, quem quer carne ao talho, porque razão vais a esses bares”. Das perseguições dos tabloides aos acossos das bancadas, às bocas da rua, Justin lidou com hostilidades diferentes, mas a sua guerra, iniciada em 1990, pela normalização de um jogador gay, num meio onde o machismo tem pose tirana, prevalece como exemplo inspirador. Mark Barham, ex-colega no Norwich, bem identifica o chicote do preconceito. “Acredito que foi tratado de forma diferente, até porque todos o sabemos que ainda perdura o estigma no futebol com a revelação de algum jogador se assumir gay”.
“Complicado dizê-lo nos anos 80...”
Alex Bunbury, histórico avançado do Marítimo, um dos grandes goleadores da história dos insulares, hoje investidor no Portosantense, conheceu bem Justin Fashanu, formando dupla com o inglês na Liga Canadiana. Primeiro em 1989, no Hamilton Steelers, logo depois, em 1990, no Toronto Blizzard. Fashanu chega ao Canadá como gay assumido. “Era uma pessoa muito bondosa e eu gostava muito dele pelo seu caráter. Sabia do que já revelara sobre a sua vida mas nunca me importei como a escolheu viver e sobre os contornos da vida pessoal. Era um rapaz compreensivo e respeitador. E, na altura, era uma grande referência, que envolvia respeito pelas conquistas que tivera na 1.ª Divisão de Inglaterra”, conta Alex, esmiuçando o entendimento logrado no campo.
“Acho que ele deve ser recordado pela grande contribuição que deu no Canadá para um belo jogo. Nunca me atrevi ou atreveria a julgá-lo pelas escolhas que fez. Tratou-se sempre bem, tal como aos companheiros. Entre todos havia respeito e apreço”, justifica, maturando o pensamento sobre as terríveis histórias que sempre vinham a lume tentar chamuscar o ego de Justin. “Era muito direto e físico, bom no jogo aéreo e um grande goleador nas definições que tinha na grande área. Deve ter sido muito complicado para ele lidar com esse suposto contraste do jogador de estilo tão físico, sabendo ao mesmo tempo que era gay. Isto ainda mais especialmente nos anos 80 e 90. Fiquei orgulhoso de o conhecer, muito triste fiquei de saber com o tempo de todos os seus problemas pessoais, que levaram à sua morte”, expressa Alex, presenteado com a oportunidade de conhecer o irmão John. “Era um grande jogador, com quem estive num período de testes no Wimbledon, antes de assinar pelo West Ham. Era amável.” Sobre Justin, sabe-se que viveu homofobia no Canadá. Num jogo, provocado, sentiu-se impelido a deixar o campo.
“Tinha todos os atributos”
Procurando compreender o talento e a vida, que foi repetidamente madrasta e cruel, Kevin Reeves, antigo companheiro de ataque no Norwich e nas seleções jovens de Inglaterra, é precioso auxílio para absorver a essência de Justin, o potencial futebolístico que rapidamente centrou atenções. Era um jogador imponente nas suas condições, que expandia desenvoltura e alegria. Foram parceiros na linha ofensiva dos canários, Justin quase a completar 19 anos, Kevin com 22. “Eu chegara do Bournemouth. Lembro-me dele como um aprendiz, um jovem que estava à porta do plantel. Tinha uma autoconfiança incrível e era um personagem muito simpático. Fisicamente, era forte e poderoso, mesmo em tenra idade. Ia forçar com sucesso a entrada na equipa”, rebobina, atacando o surgimento de uma bela aliança.
“Complementávamo-nos. Ele era o tipo alto e forte, um puro 9, e eu o típico número 10, jogando fora ao redor dele. Ficámos juntos pouco tempo, mas foi um período predileto”, conta, decompondo a atmosfera exemplar que existiu no Norwich nesse tempo.
“Foi o clube ideal para ele marcar o seu nome. Escapou à pressão da grande cidade, do que poderia sofrer em Londres, Manchester ou Liverpool. Era um clube de fãs pacientes. Ele e o irmão foram criados localmente com uns pais adotivos maravilhosos. Foi um bom ambiente. O Norwich tinha uma fantástica academia e constantemente conseguiu produzir jovens jogadores, atraindo rapazes de várias áreas do Reino Unido. Foram bem treinados e bem educados”, sustenta Reeves, duas vezes internacional A pela Inglaterra e ainda figura do City. Viveu a década de 80, muito especial na afirmação do jogador negro na Inglaterra. “O racismo não foi um problema em Norwich. Ele era idolatrado pelos adeptos. Naquela época, havia muito poucos negros a morar na cidade. Lembro-me de fazermos digressões pela Austrália e Nova Zelândia, onde não se viam negros. Justin era o único e estava connosco. Ele era um sucesso, requisitado para entrevistas. Ele foi a estrela e o seu caráter simpático, bem como a sua grande confiança, conquistaram os australianos”, reconhece. Lamenta que a carreira de Justin não tenha ganho dimensão consentânea com o que prometia, na saída para o Nottingham Forest.
“Não sei como a mudança o afetou. Eu era casado e tinha um filho em Norwich, tinha um grupo de amigos e um estilo de vida diferente. Estava ciente dos rumores em torno de Justin e, em termos futebolísticos, foi triste ver que não chegou ao topo, pois ele tinha todos os atributos para isso. Mais triste fiquei quando soube do seu suicídio. Fico com memórias de alguém confiante, engraçado e adorável, sempre de sorriso no rosto e atrevido sentido de humor.”
O antigo extremo Mark Barham discorre a parceria com Justin Fashanu. “Era atlético, ótimo no ar, foi um prazer jogar com ele. Eu era extremo, cruzava e, geralmente, ele criava uma oportunidade”, recua. “Tinha uma personalidade maravilhosa e ótimas maneiras. Era alguém confiante sem ser arrogante. Sentiu o fardo de valer um milhão de libras ao ir para o Forest. Estava extasiado com a promoção dos jogadores negros. Era a época! O racismo existia mas ele nunca se queixou. Sentia-se privilegiado e adorava a sua vida. Mais tarde, as coisas viraram completamente e nunca mais foi a mesma pessoa vibrante.
“Podiam cuidar bem de si e dar muito trabalho”
Kevin Reeves reflete sobre as semelhanças entre Justin e John, portentos de força. Justin destacou-se jovem, até nas seleções ingleses, ao passo que John, um ano mais novo, atingiu a sua maior dimensão numa fase madura da carreira e como grande sustento da fama e ferocidade do Crazy Gang do Wimbledon. “Em Norwich, Justin era considerado melhor. Mas eles eram muito parecidos fisicamente, podiam perfeitamente cuidar de si mesmos no campo, e podiam dar muito trabalho aos defensores. John acaba por se desenvolver mais tarde, mas torna-se igualmente muito bom. Havia poucas diferenças.”