Francisco Geraldes: "Tenho aqui Marx, Lenine, autobiografias da Angela Davis e Malcolm X. É o meu tema atual"
Francisco Geraldes discute política, exalta a entrada em cena de Mbappé e lamenta que o futebol seja meio apagado de mais mensagens decisivas.
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Trocou os Emirados Árabes Unidos pela Malásia e encontrou o conforto no campo e no país a partir do convite do Johor. O impacto de Francisco Geraldes é já de quatro golos em seis jogos.
Como explicar o atual momento e o contexto da viragem geográfica na carreira?
-Estou num momento bastante bom, sólido, num clube que acredita muito em mim. Vejo uma estrutura muito bem montada, desde o staff ao diretor desportivo. Estou rodeado de pessoas competentes, com uma maioria espanhola, com experiência ao nível de La Liga. O Johor é um clube bem organizado, que oferece ótimas condições de trabalho, de treino e ginásio. Não esperava isto aqui, o estádio é fantástico. Tudo reunido para correr bem, como está a correr, pois estou a jogar e com bom rendimento.
Alguma razão para ter trocado em pouco tempo o Baniyas pelo Johor?
-A questão financeira foi primordial para sair do país. Mas a experiência nos Emirados foi algo que não correu como esperava, não foi do meu agrado, cultural e desportivamente. As condições não eram boas e, climatericamente, não me senti confortável. Achei que era boa decisão mudar e aproveitei um interesse que existia desde agosto, quando já tinha assinado pelo Baniyas. Os contactos foram reatados, o interesse seguiu, eu percebi a dinâmica do clube e não demorei a perceber: era o passo certo.
Sente-se inserido num clube gigante na região?
-É um clube sem par no sudeste asiático. É o melhor desta área geográfica, de uma dimensão avassaladora, massa associativa gigante, com uma pressão interna enorme para obtenção de resultados. É um contexto que me agrada, um clube que também vai ser competitivo na Liga dos Campeões Asiática, uma prova que me gera muito interesse e que convoca muitos olhares. Foi uma decisão fácil, porque o Johor é mesmo muito grande.
Tem liberdade criativa como 10 no Johor ?
-O treinador dá-me bastante liberdade, embora num sistema que nunca tinha jogado, em 5x3x2. Não sou 10, há um pivô defensivo e dois médios centros, onde estou. Estou confortável, com máxima liberdade para utilizar as características que mais beneficiem a equipa. Estou confiante e a fazer golos.
O destino é prenúncio de carreira mais exploradora?
-Foi um bocadinho a vontade de mudar de ares, retirar um pouco de pressão pessoal que colocava em mim. Depois, estou numa parte do mundo superinteressante para mim, perto do Japão, Coreia, Indonésia, Tailândia. É uma zona do globo que me deixa confortável, muito mais do que o Médio Oriente. Desportivamente é um projeto aliciante, luto por títulos no contexto interno e internacional. Tudo somado, é um cenário atrativo.
Imagino que esteja mais desligado de um regresso a Portugal a breve prazo?
-Não é algo que queira ou que faça parte da minha ambição. Sei que deixei excelentes relações em todos os clubes onde estive, fui bem-sucedido em todos. Tenho um sentimento de gratidão pelas recordações e amizades que ficaram. O que fiz fala por si, o meu desejo será voltar mas não num futuro próximo, até porque assinei por dois anos e meio com o Johor.
Sabendo de alguns interesses particulares, como leva o dia-a-dia na Malásia?
-O meu dia está focado no treino, na disciplina que se exige a um profissional, que joga num clube muito exigente, tanto pelos adeptos como internamente. Não há desvios. A vida fora do futebol é passada entre a leitura e o boxe, embora tenha de ter cuidado para não interferir com o meu treino. A intenção é que esteja bem fisicamente.
Sente que vive o futebol de forma mais leve?
-Não tento ver o futebol de forma mais leve. Sou competitivo, adoro o treino, gosto muito e tenho fome de ganhar. Odeio perder, tenho mau perder! Do ponto de vista profissional não há treinador que me possa apontar algo. Cada jogador tem a sua personalidade, forma de existir e olhar para o mundo, isso não impacta no que faço no campo e nos treinos. Até me ponho a lembrar do Nuno Santos, do Sporting, e do seu perfil muito particular. Ele é engraçado mas era fácil chateá-lo ou irritá-lo, por ter os nervos à flor da pele. Todos os jogadores têm o seu lado mais íntimo e as suas peripécias.
E a suas peripécias na Malásia?
-As peripécias já são algumas. Tenho aqui um vizinho espanhol no mesmo prédio, o meu colega Óscar Arribas. Temos um passatempo de nos tentarmos assustar um ao outro. A última vez foi com a ajuda da namorada dele, ela saiu cedo para fazer crossfit e deixou a porta aberta para eu poder assustá-lo de manhã. Estive no quarto ao lado cerca de 20 minutos até ele acordar e quando já se preparava para sair preguei-lhe um susto enorme.
Tocou nos livros. Qual é a literatura que o acompanha na Malásia?
-Estou mais focado em literatura política, mais marxista, tudo o que trouxe está relacionado com o tema, porque é algo que estou a aprofundar e a estudar. Tenho aqui Marx, Lenine, autobiografias da Angela Davis e Malcolm X. É o meu tema atual, os lugares onde jogo não impactam nas escolhas.
Já sugeriu livros a algum colega?
- Não vejo qualquer colega interessado em ler “O Estado e a Revolução” ou o “Manifesto do Partido Comunista”.
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Sempre ativo nas redes, no que diz e pensa, também honrou Cláudia Simões num jogo do Johor...
-As minhas partilhas e interações sempre foram uma constante. Não há qualquer novidade, sempre achei importante valorizar do ponto de vista social certos acontecimentos. Embora seja sempre algo diminuto, são coisas que objetivamente não têm muita força. É o trabalho que posso fazer para ajudar. No caso da Cláudia Simões há outras questões, mas não importa falar delas. São coisas que me apoquentam, tenho uma visão do mundo que gosto de partilhar, a história vai avançando e vou ser sempre voz ativa.
Problemas que gosta de aprofundar abertamente?
-A revolta pessoal existe, mas gosto de olhar para o tema de forma mais racional do que emotiva. Reagir só com revolta não explica o aparecimento ou reaparecimento destes fenómenos. Temos de estudar o modo de produção do capitalismo, que gera e necessita destes fenómenos para produzir ou reproduzir capital, aumentar assimetrias entre classes. Em alturas de crise do capitalismo, estes fenómenos ocorrem com maior severidade. É um momento que temos de superar.
Agradou-lhe o facto de Mbappé e Koundé terem opinado no Europeu sobre as eleições?
-Não tenho um centésimo da projeção do Mbappé e tenho pena que seja um caso raro. Não foi qualquer apontamento ou crítica radical, que vá ao encontro da raiz do problema. Foi algo já bastante bom, mas sempre numa perspetiva progressista ou reformista. É fundamental que falem, que continuem a dizer o que deve mudar. Mas podem ir mais além. Tenho pena de serem quase nulos os jogadores que atuam. Não me lembro de ninguém politicamente interventivo, talvez só o Cantona. Tenho pena que os melhores, os que têm mais projeção, não falem mais, pois há muito aquela ideia de que o jogador tem de jogar e não se meter na política. O problema é que tudo é política! Talvez o Mbappé e o Koundé tenham tido impacto grande em França. Talvez sim, talvez não. Vamos ver o que se vai passar em termos políticos em França, há uma luta pela social democracia. Mas isso tem os seus limites e vamos ver até que ponto a burguesia francesa vai aceitá-los.