"Euro'2024 é o grande acontecimento desde a independência da Geórgia. Uma longa espera"
Nunca o povo georgiano exultou tanto desde que se libertou das amarras da União Soviética. Kvaratskhelia ajudou a honrar o legado de Kipiani e Daraselia, mas também de Ketsbaia ou Arveladze. Adversário de hoje carrega uma história de luta e empenho por um sonho, além de vínculos vários a um futebol de marca sedutora
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A Geórgia, que hoje defronta Portugal, funciona como atração no Europeu, tendo em conta a estreia numa fase final, toda a árdua luta para se emancipar como nação soberana, futebolisticamente dotada e capaz de honrar os pergaminhos das gerações de sessenta, setenta e oitenta. Grupos que fizeram do Dínamo Tblisi um colosso da Europa, mesmo sob domínio soviético. A vitória na Taça das Taças de 1980/81 contra o Carl Zeiss Jena, por 2-1, foi a verdadeira extensão de uma equipa temível que nunca desceu na divisão maior da URSS e a única, conjuntamente com o Dínamo Kiev, que atingiu o topo numa competição europeia. Campeão soviético em 1964 e 1978, o Tblisi foi uma escola de craques, trato de bola irresistível com o aroma técnico do futebol georgiano a ser identificado facilmente mesmo nas mais fortes seleções da União Soviética. De Metreveli em 1964 a Kipiani ou Daraselia em 1978. Com o apogeu do maior craque moderno desde que a Geórgia é nação independente, algo que remonta a abril de 1991, nasceria dez anos depois o homem responsável por este lindo sonho georgiano na Alemanha.
Kvaratskhelia foi luz e imaginação na campanha, arrebatando corações e levando a equipa um desfecho radioso, num duro play-off com a Grécia, que se prolongou aos penáltis, celebrado por cada pedaço de terra do país caucasiano, que viu a independência fustigada por guerras localizadas na Ossétia do Sul e Abecásia, e delicado estado económico. Kobiashvilli, Kaladze, Kinkladze, Arveladze ou Ketsbaia foram nomes georgianos que mais forçaram destaque para a Geórgia no panorama internacional, mas nunca viram proximidade com uma fase final.
O JOGO falou com Timur Ketsbaia, destacado médio, hoje treinador da seleção do Chipre, figura do Newcastle nos tempos de Shearer. “Este apuramento foi o grande acontecimento desde a independência. Foi uma longa espera. Nós também tentámos, de forma complicada, era muito duro na nossa altura. Estou muito feliz pelo que foi conseguido, fizeram um sonho transformar-se realidade. É algo que pode ajudar muito o país e o futebol a evoluir, o campeonato também precisa de melhorar. Temos que exportar mais jogadores”, revela Ketsbaia, de 56 anos, lendo a obtenção deste sucesso, após a Geórgia garantir vitória no Grupo C da Liga das Nações. “Para ser honesto, a UEFA tornou a nossa vida mais fácil. Foi uma grande mudança e, pela Liga das Nações, chegou esta possibilidade. Há quatro anos, também tivemos isso em mente mas faltaram-nos os adeptos, por causa da Covid-19. Com eles, por detrás, conseguimos manejar o nosso êxito e soubemos aproveitar esta chance”, testemunha o antigo médio.
Atualmente, claro, há uma figura que centra todas as atenções e inspirações. “Já estivemos perto há quatro anos, mas Kvara não era o jogador que é hoje. Todos os jovens georgianos vivem fascinados com o que ele faz, querem ser iguais, adoram o rendimento dele em Itália, puxam todos pelo Nápoles. Ajudou, claramente, o futebol a tornar-se mais popular, fazendo com que se trabalhe também para o melhorar. Estou seguro que vão aparecer jovens nas melhores equipas do mundo”, defende Ketsbaia, triste por não ter mergulhado literalmente no calor humano que emergiu por Tbilisi e demais cidades: “Foi algo inacreditável, acho que 70 por cento da população saiu à rua para o festejar. Foi a primeira vez que algo do género aconteceu em mais de 30 anos. Isto é um povo sem divisões, é algo único que só o futebol permite. Infelizmente estava no Chipre, foi uma pena não ter vivido isto. Mas nada apaga a imagem que todos o celebraram, até aqueles que nem sabem bem o que é futebol”.
As possibilidades de a Geórgia seguir em frente são baixas, mas, neste contexto, não é o fundamental. “O importante já aconteceu, só o facto de estarem lá é muito. Há que apreciar o momento, estão a viver algo incrível. Todas as equipas são difíceis, Portugal é só uma das melhores da Europa e candidata a ganhar o troféu. Até lhes desejo as maiores felicidades nisso. Irmos a tempo de defrontar o Ronaldo, que toda a gente conhece, de 20 anos de excelência, é a cereja no topo do bolo. Ele envolve muita expectativa, ganhou tudo, marcou imensos golos, firmou recordes e conquistou bolas de ouro. É um modelo também para os nossos jovens e só o facto dele jogar faz com que os georgianos conheçam bem a seleção de Portugal”, defende este embaixador da Geórgia.
“Técnicos por natureza e com a geração de 1981 como heróis”
Ketsbaia viveu o arranque da Geórgia. “Acompanhei os primeiros tempos, ganhei o primeiro campeonato e fui eleito o melhor jogador. Era um momento duro, era um país novo, era complicado escalar, apesar de alguns de nós termos saído para boas ligas”, recua, mergulhando no que foi uma inspiração. “Cheguei em 1987 ao Tbilisi, autêntico sortudo pelo privilégio de ter jogado com a maioria que vencera a Taça da Taças de 1981. Eram os meus heróis, muitos titulares na União Soviética”, assevera, traçando o perfil diferenciador: “Tivemos atletas muito técnicos, expoentes da União Soviética. Na fase independente, surgi eu, Kinladze, Arvelaze, Jamarauli. Essa é a nossa natureza, não somos físicos de corrida e força, somos tendencialmente habilidosos”.
Manter a aura!
Shota Arveladze exalta vibração nas ruas e declara paixão ao Europeu e a outras grandes provas. Antigo goleador lembra os tempos de muita pedra partida para elevar a Geórgia no mapa internacional. Vibrou como apuramento, que fez soltar um autêntico festival por todas as ruas do país.
Goleador do Trabzonspor, Ajax e Rangers, Shota Arveladze atravessa a década de noventa do futebol georgiano com pinceladas de ouro. Já com projeção e relevo como técnico, o antigo avançado reconhece uma moldura brilhante virada para o céu com esta participação no Europeu. “Isto foi muito sonhado, foi uma batalha dura, envolveu muita luta ao longo de 30 anos. Agora podemos retirar prazer deste Europeu e imaginar Jogos Olímpicos e Mundiais com a Geórgia. Foi uma celebração inacreditável. Tudo é inexplicável”, exorta, radiante pelo desbloqueio de tantas agruras, tornear de vicissitudes, numa libertação de ambições prolongadamente estranguladas. “Celebraram todos os que puderam sair à rua, todos sem exceção! Só vi isto quando o Dínamo Tbilisi ganhou a Taça da Taças, todo o povo festejou. Eu com sete anos é que fiquei em casa, era pequeno para sair à rua. Tenho na cabeça tudo o que foi vivido, contado por pais e amigos. Agora senti tudo igual, de verdade, mas passeava pelas ruas. Vi os adeptos a cantarem e a celebrarem. Até estrangeiros que vieram de outros países da União Soviética vieram celebrar connosco. Foi fantástico, um festival! Queremos manter esta aura, queremos estar bem no Europeu, fazer figura contra Portugal e contra Ronaldo. Vamos dar o nosso melhor contra um grande favorito”, avisa Arveladze.
Na memória batalhas bem para lá dos relvados. “Foram tempos difíceis, a situação política era louca, tínhamos guerras na Abcássia, Ossétia, era tudo junto. Tínhamos jovens a morrerem em algumas fronteiras enquanto jogávamos. Não tínhamos eletricidade nem gás, mas tínhamos de ir em frente e jogar. E contávamos com 75 mil pessoas, um apoio impressionante. Demos passos grandes como foram as primeiras vitórias ou jogos em que medimos forças com Espanha, Alemanha, Itália, França, Bulgária ou Roménia. Fizemos parte disto, fomos pioneiros na viagem”, sublinha, radiografando o momento de Kvaratskhelia e companhia e uma liderança de Levan Kobiashvili. “O país agora mudou, financeira e politicamente é mais estável. O futebol melhorou consequentemente, já não temos um cenário caótico. Devemos agradecer a quem tem dirigido o nosso futebol e esperar que os nossos rapazes nos possam dar mais alegrias”, expressa.
Bate uma nostalgia por ter crescido e jogado na seleção, no Dínamo Tblisi e no Trabzonspor com o irmão gémeo Archil. “Ao jogarmos na juventude, tínhamos como ídolos Kipiani e Maradona e usávamos os dois o número 10. Os rivais ficavam muito confusos, porque éramos idênticos, estávamos na mesma zona, vinham piadas em campo de quem tinha feito o passe”, brinca Arveladze, reconhecendo a matriz indelével do futebol georgiano. “Ainda somos muito técnicos, na União Soviética éramos os brasileiros soviéticos, empregávamos muita técnica ofensivamente. O futebol mudou e agora temos de nos ajustar, ser bons na frente e atrás, tudo em sintonia. E vemos que esta Geórgia faz jogos táticos, percebe as necessidades de um jogo”, classifica.