"Ofereceu-se para nos levar e perguntei-lhe: 'Tenho de tirar os sapatos?'"
Mbappé relatou os sonhos que o acompanharam desde criança: os pósteres de Cristiano Ronaldo, a primeira vez que entrou no carro de Zidane e até um recente encontro que teve com Mourinho.
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Em Bondy, uma localidade francesa dos arredores de Paris onde nasceu Mbappé, há uma regra sagrada. "Aprendemos muito cedo que se passarmos na rua por um grupo de 15 pessoas e só conhecermos um, temos duas hipóteses: acenamos e seguimos ou apertamos a mão aos 15. Se só o fizermos com a pessoa que conhecemos, as outras 14 nunca esquecerão e vão tirar-te a pinta", explicou o internacional francês num relato escrito que fez para o "The Players Tribune" sobre memórias de infância, sonhos e o trajeto percorrido no futebol.
A tal regra válida nas ruas de Bondy foi-lhe muito útil nos corredores luxuosos de um recente prémio The Best, organizado pela FIFA. Segundo conta Mbappé, ao ver José Mourinho, e conhecendo-o de outras ocasiões, quis cumprimentá-lo. O treinador português "estava rodeado de quatro ou cinco amigos" que o francês não conhecia. "Pensei: vou lá ou sigo? Decidi ir e cumprimentei individualmente cada um deles. Foi engraçado ver a expressão surpreendida, do género "ele está a dizer-nos olá?!"A verdade é que aprendemos a tratar todos da mesma forma. Quando nos afastámos, o meu pai só se ria, e dizia "isto é Bondy"".
A pobreza da região não equivalia a pobreza de espírito, apesar dos preconceitos a que sempre estiveram sujeitos. "A verdade é que, lá, vi miúdos rijos que ajudavam a minha mãe a carregar as compras. E esses bons exemplos nunca aparecem nas notícias."
"Zizou, tiro os sapatos?"
As origens humildes de Mbappé nunca o impediram de pensar em grande. "Não tínhamos muito dinheiro, mas sonhar não custa". E os sonhos tinham forma redonda, de bola, que o agora jogador do PSG não trocava por nada. O pai ainda lhe ofereceu um 4x4 com bateria que Kylian podia conduzir, e que os amigos cobiçavam, mas ele não quis saber. "Só a bola me interessava".
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Mbappé começou cedo a dar nas vistas e aos 11 anos foi a Londres treinar na academia do Chelsea. "Não disse a ninguém, mas, quando regressei, os meus amigos perguntaram-me: "Onde estiveste?" Contei-lhes, e até disse que tinha conhecido Drogba. Não acreditaram. Diziam que o Drogba não se encontrava com miúdos de Bondy. Eu não tinha telefone na altura, mas o meu pai emprestou-me o dele e mostrei as fotos que tirei. Eles finalmente acreditaram e não ficaram com inveja; estavam encantados." Três anos depois, teve igual experiência no Real Madrid. "Disseram ao meu pai que o Zidane, que era o diretor desportivo, me queria ver". Foi na semana em que completou 14 anos, e quando chegou a Madrid tinha Zizou à espera no parque de estacionamento do centro de treinos. "Estava lá no seu belo carro e ofereceu-se para nos levar ao campo de treinos. Fez-me sinal para entrar, congelei e perguntei-lhe: "Tenho de tirar os sapatos?" Não sei porque o disse, mas, afinal, era o carro de Zizou. Ele achou graça e disse "claro que não". Levou-me, e eu só pensava "o Kylian de Bondy está no carro de Zizou; não é real, estou a sonhar"". Diz Mbappé que sentiu o mesmo na Rússia, quando se preparava para o primeiro jogo do Mundial que viria a conquistar. "Virei-me para o Dembélé e disse-lhe: "Olha para nós, o rapaz de Évreux e o de Bondy num Mundial, e ele dizia: "Sim, é inacreditável.""
Ronaldo nas paredes
Um ralhete da mãe mudou-lhe a vida. O primeiro jogo de futebol num campo a sério não lhe correu bem; Mbappé sentiu-se paralisado pela pressão. No final, conta ele, a mãe foi buscá-lo ao relvado por uma orelha e disse-lhe que admitia que ele falhasse 60 golos, mas que jamais toleraria que se recusasse a jogar por medo. O pai, que o treinou, foi igualmente um conselheiro capaz de o obrigar a manter os pés no chão quando a cabeça voava. "Futebol era tudo", conta Mbappé que, em vez dos super-heróis da BD, tinha as paredes do quarto forradas com pósteres de Cristiano Ronaldo e Zidane. "Já mais crescido, também tive alguns do Neymar, e ele isso muito engraçado, mas isso é outra história", remata.