"Chorei muito. Zagallo nunca me confrontou por bater de frente contra o preconceito"
Paulo Cézar Caju, uma das figuras mais icónicas do futebol brasileiro dos setentas, narra em exclusivo ao JOGO toda a sua experiência com a lendária figura de Mario Zagallo que morreu aos 92 anos. Experiência conjunta no Botafogo, Flamengo e na conquista do Mundial de 1970. Um dos últimos a visitá-lo em março
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Campeão do mundo em 1970, bem novo, apenas com 19 anos, Paulo Cézar "Caju" viu o seu talento precoce abençoado pela liderança e olho clínico de Zagallo, que, então, jovem técnico, depois de carreira grandiosa encerrada no Botafogo, encetou a de treinador, mantendo o comando de um elenco que mantinha unidades do seu tempo como Gerson e Jairzinho.
Caju, brilhante atacante, ponta-esquerda, junta a sua magia e irreverência, uma aura rebelde que dominou a carreira, batendo pé a preconceitos e conformismos sociais e reivindicando como poucos a palavra do negro na sociedade brasileira, era um privilegiado por ser um menino atento a tudo o que acontecia no clube de General Severiano, pois tinha o seu pai adotivo Marinho Rodrigues a treinar Zagallo e companhia em 1962 1963. A morte da lenda brasileira, tetracampeão mundial, somando façanhas de jogador, e, 58 e 62, técnico, em 1970, e coordenador em 1994, provocou onda de consternação geral mas apanhou muito tocado Paulo Cézar Caju, hoje com 74 anos, e que documentara no final de março a visita na Barra da Tijuca à casa do Velho Lobo.
"Um negócio de loucos, nove meses que passaram a correr. Já o encontrei com a saúde debilitada e sem locomoção. E andava tentando visitá-lo de novo, já me chegaram a avisar que ele havia sido internado. Acordei de madrugada com as notícias e foi um choque. Chorei muito, ele deu-me liberdade para falar e fazer as coisas à minha maneira", contou...juntando carinho e muita nostalgia ao rebobinar fita tão sublime de uma carreira cheia.
"Eu era um 'garoto' quando conheci Zagallo, foi jogador do meu pai durante uns três anos, eu andava sempre espreitando os treinos, porque havia Garrincha e um todo um equipaço. O meu pai vai depois para Honduras e Colômbia e quando se dá o regresso ao Brasil é que eu vou treinar ao Botafogo com 17 anos, ao lado de Gerson e Jairzinho. Faço o primeiro treino e marco três golos, o primeiro jogo e marco outros três. Ficaram logo comigo mas Zagallo, que treinava os juvenis, soube desse impacto e queria levar-me para os juvenis. Não teve sorte, claro! Não foi preciso esperar muito, pouco depois assumia a primeira equipa com Chirola, mais o preparador-físico Lídio Toledo. Essa tripla ganhou tudo no Botafogo e na seleção", salienta, subindo à tona o êxito também partilhado no Flamengo.
Vitória contra Benfica de Eusébio e o som de Fio Maravilha
"São dois anos e bicampeonato carioca. Ainda conseguimos vencer o torneio de Verão em 1972 contra o Santos de Pelé e o Benfica de Eusébio e Coluna. Vitória por 2-0 contra o Benfica e foi nesse jogo que Jorge Ben, que assistia no Maracanã compôs a música Fio Maravilha. vendo um golo de João Sales, imortalizado por Fio Maravilha", recupera. Momento delicioso, sem transmissão televisiva, na memória do mundo por uma música geradora de eterno encanto. "Jogada celestial... sacudiu a torcida. Tabelou, driblou dois zagueiros, deu um toque e driblou o goleiro. Golo! Um golo de classe, onde ele mostrou a sua malícia e a sua raça." Zagallo teve a sua quota-parte ao lançar o folclórico Fio na segunda parte.
Paulo Cézar Caju tem o mítico Zagallo na memória, desfia a história, sem hesitar em cada louvor, o novelo está preenchido por inesquecíveis imagens. "É um dos meus maiores amigos, uma espécie de irmão mais velho. O que mais retenho dele foi a forma como me entendeu. Eu sempre enfrentei o preconceito no Brasil, batia de frente, recusava dar entrevistas aos principais jornais do Rio e São Paulo. Falava sem medo, falava da cor preta, falava a verdade. Ele nunca me contestou, nunca me chamou a atenção, nem no Botafogo, nem no Flamengo, nem na seleção. Estivemos juntos como jogador e treinador cerca de seis anos. Deu-me muita confiança, foi o meu melhor treinador juntamente com meu pai e Didi", relata.
"Só na morte é que a porra deste país reconhece... em Inglaterra era condecorado de Sir"
Amargurado por uma onda de apoio e tributo que peca por tardia. "Só quando se morre na porra deste país é que somos reconhecidos. Zagallo foi criticado durante anos pela sua personalidade forte e postura muito disciplinada. Como jogador nunca foi considerado excecional, mesmo sendo campeão do mundo titular em 1958. Superou pontas como Pepe e Canhoteiro, o que deixava incrédula a imprensa de São Paulo. Para os paulistas Zagallo era só um extremo trabalhador. Eu vi como ele jogava, não era muito veloz, mas era hábil, muito técnico e muito inteligente", recorda Caju, chamado de Urubu Feio. "Para minha felicidade Zagallo foi contratado pelo Botafogo e logo apanhou o meu pai como treinador. Devia ser eu um miúdo de dez anos vendo esse craque e figura. A ligação foi sempre forte, passei com o tempo a conviver com ele e com a sua família. Num país como a Inglaterra, Zagallo seria condecorado de Sir", atira, corrosivo ao seu estilo.
Paulo Cézar Caju, herói ainda em França, atuando pelo Marselha, que confessou ter vendido a sua medalha de campeão do mundo para pagar o vício da cocaína numa fase mais crítica e acelerada da vida, não perdoa o aproveitamento na morte de Zagallo, intemporal pelas conquistas de 1958 e 1962 como jogador, pelo Mundial de 70 ao leme, e pela presença ao lado de Parreira no corpo técnico de 1994.
"Fiz algumas excursões com ele e no final de cada treino e jogo havia sempre entrevistas coletivas. Foi, nesse contexto, que ele explodiu uma vez e disse 'vão ter de me engolir'. No Brasil temos um grande cancro que é o império Globo. Custa-me que ele esteve doente muito tempo e ninguém falava dele ou o visitava. Agora que morreu, começaram a fazer todo o tipo de conteúdos e a querer falar com todo o mundo da geração 70 que é a verdadeira família do Zagallo. Eu não alinho nesse papo. Mas a culpa é também da CBF, perdeu-se uma lenda, tinham de fazer uma cerimónia e convidar todos os campeões do mundo de 1970. Mas também tenho pena que a minha geração não se manifeste", solta o remoque".
"Foi inovador no México e deu no que deu"
Recua, por fim, ao cunho do Velho Lobo no Mundial do México. "Zagallo foi um inovador e começou nessa herança de João Saldanha para o Mundial de 1970, que foi afastado pelos seus pensamentos comunistas, pressões políticas, sendo muito inteligente. Ele mudou algumas peças e mudou o estilo de jogo. Fez uso de uma base de jogadores que pertenciam às três melhores equipas da altura, Santos, Cruzeiro e Botafogo. Que já vinham jogando um futebol maravilhoso com Saldanha. Mas ele mudou Piazza e Gerson por Rivelino e Clodoaldo, os treinos coletivos eram impressionantes na qualidade que tínhamos. Zagallo impôs a sua personalidade, levou-nos para um estágio na montanha em Guanajuato, pensando na nossa adaptação à altitude do estádio Azteca. Havia Pelé, que era o único campeão do mundo de 1958, ele era único e tínhamos estima por ele, por carinho e não imposição. Ele vinha de um Mundial difícil por esse 'safado' português, o Morais. Em 70 Zagallo improvisa com Tostão como ponta-de-lança, Pelé e Rivelino por detrás. Foi baseando o jogo em triangulações e tabelas e deu no que deu. Futebol brilhante e campeões do mundo", realça, sem beliscar o seu papel de suplente.
"Para mim estar convocado já era uma feito, tinha só 19 anos e estava rodeado de atacantes maravilhosos. Era muito difícil para mim, Zagallo tinha muita afinidade e carinho por mim, confiava no talento e na pessoa. Muita gente até me via como protegido, mas nada disso, era só inveja!", vinca Caju, condecorado em França onde jogou no Marselha e viveu largos anos como 'Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra'. "Em França não condecoração alguma para estrangeiros da cultura ou desporto. Só para mim! E não foi pelo futebol, foi pela minha luta contra o racismo."