Recusou proposta milionária para ficar no Aves e admite: "Se calhar nunca mais..."
ENTREVISTA A JOSÉ MOTA (PARTE 1) - Despedido na semana passada do comando técnico do Aves, José Mota explicou o que correu mal, vincando que é o mesmo treinador que venceu a Taça de Portugal e fez história no clube.
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Mudanças na estrutura do Aves levaram a alguma instabilidade que apressou o divórcio com o treinador. Mota ficou surpreendido com o despedimento. Há um mês e meio "era impensável sair".
O que falhou no Aves?
-Não se trata de falhar... Até à minha saída estávamos a fazer um campeonato normal. Podíamos e merecíamos ter mais pontos, porque fizemos muitos jogos com qualidade e não fomos inferiores aos adversários, mas não fomos muito eficazes na finalização... Acredito que o Aves permanecerá na I Liga, porque o grupo tem condições para isso. Na Taça de Portugal discutimos os "quartos" com o Braga e na Taça da Liga discutimos a final-four com o Benfica.
"Fiquei desiludido porque não merecia. Não tenho nada a provar a ninguém, continuo a ser o mesmo treinador que ganhou a Taça de Portugal"
Ficou surpreendido com o desenlace?
-É claro que sim. Nunca gostamos que estas coisas aconteçam. Fiquei desiludido porque não merecia. Não tenho nada a provar a ninguém, continuo a ser o mesmo treinador que ganhou a Taça de Portugal, que garantiu pela primeira vez na história a permanência do Aves na I Liga, pois nas três participações anteriores desceu sempre. Mas percebo que há sempre um desgaste de ambas as partes e, pela minha experiência, no futebol passa-se de bestial a besta num ápice. Para mim, há mês e meio, era impensável sair e acabei despedido de um momento para o outro. E, continuo a dizer, sem razão aparente.
Em termos de estrutura, o que mudou no clube?
-Quando se altera algo que é profundo e que envolve a liderança há sempre um período de adaptação. Houve elementos que eram importantes na estrutura e foram substituídos por pessoas novas, que não estavam muito identificadas com a realidade do clube e isso provocou alguma instabilidade. Percebia-se que o clube vivia com alguns sobressaltos, com algumas dificuldades. Sabíamos que seria uma época difícil, pois vínhamos de uma campanha extraordinária, com duas conquistas históricas: a primeira manutenção e a Taça de Portugal. Por outro lado, saíram jogadores muito importantes, como o Adriano, o Tissone e o Guedes. Mesmo assim, construímos uma equipa competitiva, capaz de corresponder às expectativas da permanência.
A que se refere quando fala de instabilidade...
-Quando ganhámos a Taça de Portugal e depois não participámos na Liga Europa isso causou uma grande desilusão e frustração. Estávamos motivadíssimos para disputar a Liga Europa e, por isso, ficou uma sensação estranha, de menor rigor, pois pela primeira vez no futebol português aconteceu uma situação destas. É claro que isso mexeu com os jogadores e criou alguma instabilidade emocional, a ponto de alguns quererem sair. E depois da forma como o Adriano saiu, após pressionar a Direção, outros jogadores acharam que também tinham esse direito, criando-se ali um certo mal-estar, mas tivemos de lhes dizer que não. Ficaram resquícios que originaram alguns problemas, uns conhecidos e outros não.
Apesar destes focos de instabilidade, o plantel dava garantias de sucesso?
-Sim... mas é óbvio que ficou fragilizado com as saídas do El Adoua, do Nildo e do Hamdou, mas poderá ser reajustado com contratações.
Mecrado? Existiu uma ou outra situação da qual não tive conhecimento"
É verdade que houve contratações e saídas que desconhecia?
-Existiu uma ou outra situação da qual não tive conhecimento, nomeadamente a transferência do Hamdou, da qual só soube quando ele me contou. Na minha opinião, isso não foi correto, pois não é assim que essas situações devem ser tratadas, mas as propostas apareciam e rapidamente resolviam o assunto. Eram momentos de desilusão para mim na medida em que acho que nessas alturas nos devíamos sentar e conversar para encontrar a melhor solução para o clube.
CONTRATO DE UM MILHÃO DE DÓLARES FOI AO AR
Uma semana depois de ter abandonado o comando técnico do Aves, José Mota já teve propostas para analisar, mas recusou-as. Duas foram de clubes portugueses e uma chegou da Argélia. Voltar a trabalhar no estrangeiro, depois de uma primeira experiência em 2017, nos tunisinos de Sfaxien, é um dos objetivos.
Em novembro, teve uma proposta milionária para treinar o Al-Faisaly, da Arábia Saudita, mas não o deixaram sair do Aves e, dois meses depois, foi dispensado. Que comentário lhe merece esta ironia?
-É verdade que era uma proposta financeiramente irrecusável e só faltava assinar o contrato. Mas falei com o presidente do Aves e ele disse-me que não era possível concretizar o meu desejo porque eu era o rosto do projeto do Aves e não o podia abandonar. Por isso, pela confiança e pela pessoa que ele é, decidi continuar, apesar de estar diante de uma proposta que se calhar nunca mais vou ter na minha vida. Mas tinha aqui um contrato e uma palavra a manter e continuei com a mesma vontade e determinação.
"O telefone já tocou. Recebi dois convites de Portugal"
Ainda é um desempregado recente, mas será que o telefone já tocou?
-Sim, já tocou. Aliás, logo no dia seguinte recebi um convite e no domingo passado outro, ambos de Portugal, cujos nomes, por uma questão de princípio, não vou divulgar. Entretanto, surgiu também o Medea, um clube grande da Argélia, mas recusei. Vou refletir e tentar perceber o que se passou, continuando tranquilo, pois sei que as coisas vão acontecer com naturalidade.
Depois da aventura no CS Sfaxien, da Tunísia, em 2017, voltar a treinar no estrangeiro é um dos seus desejos?
-É verdade, um dos meus objetivos é treinar no estrangeiro. Sei que nesta altura os campeonatos estão a terminar e nos mercados que têm interesse as coisas acontecem no início ou no primeiro terço do campeonato. Por isso, tenho de ter um pouco de calma e ponderar bem em que clubes devo aceitar propostas.
"EM CARREIRA SOU UM PUTO NOVO"
Admirador de Jesualdo Ferreira e de Jorge Jesus, José Mota lamenta que os treinadores mais velhos sejam considerados ultrapassados. Nesta profissão, o técnico defende que a experiência é uma virtude e não um defeito.
Jesualdo Ferreira chegou ao FC Porto aos 61 anos; Jorge Jesus ao Benfica com 55. Aos 54 anos, o José Mota ainda sonha com um grande?
-Não projeto a minha carreira dessa forma, mas temos de acreditar que possuímos condições para treinar qualquer clube... Não sei o que o futuro me reserva, e o que tiver de acontecer vai acontecer. Em Portugal muitos agentes me dizem que vão falar ao clube A, B ou C, mas eu digo sempre que não precisam de falar porque toda a gente me conhece. Por incrível que possa parecer, até com o Sfaxien foi assim: ouviram falar de mim e fizeram um contacto direto. Digo isto com algum orgulho.
"Temos de acreditar que possuímos condições para treinar qualquer clube..."
Em Portugal, a idade pesa na escolha dos treinadores?
-No futebol português é ridículo dizerem que se tens xis anos estás ultrapassado. Tenho 54 anos e não estou ultrapassado. Aliás, acho que sou mais treinador agora do que era há vinte anos. Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas disso. Costumo dizer que se tivesse de ser operado ao coração preferia um cirurgião com 54 anos do que um com 30. Porquê? Porque o mais velho é mais experiente. Sei que em termos de carreira sou ainda um puto novo, comparando com o Jesualdo Ferreira ou o Jorge Jesus, que têm mais dez ou onze anos que eu e continuam no top. São as minhas referências, dois treinadores que aprendi a admirar. Outra coisa é que desde que enveredei por esta carreira sempre tive trabalho, nunca estive no desemprego. Isso para mim é importantíssimo. As pessoas sempre me contrataram pela minha competência. Nuns lados foi melhor noutros pior, mas orgulho-me de tudo o que fiz.