ENTREVISTA A JOSÉ MOTA (PARTE 3) - O que pensa um treinador experiente sobre eventuais mudanças no futebol português? E que grandes histórias viveu? Conheça as ideias e as memórias de José Mota em primeira mão.
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Tempo útil de jogo, bilhética e espaços para treinar. José Mota aponta três caminhos para melhorar a qualidade do futebol português e as condições de trabalho, por achar que isso "seria ótimo" para a valorização de jogadores e treinadores, com evidentes benefícios para os clubes.
Que medidas defende para melhorar o futebol português?
- Melhorar o tempo útil de jogo, porque há realmente algumas paragens que deviam ser superadas, algumas que muitas vezes são responsabilidade dos treinadores, e outras que resultam do excesso de faltas. Há muitas que devem ser evitadas, para podermos aproximar-nos da média das outras ligas europeias. Acho também que os bilhetes são caros e devíamos ter isso em atenção. O povo português gosta de futebol, mas ao preço a que estão os bilhetes não basta gostar e as pessoas pensam duas vezes se devem ir aos estádios.
Depois há que melhorar as infraestruturas dos clubes portugueses e demais logística. No Aves tive muitas dificuldades ao nível do treino, porque não tinha campo. Umas vezes treinávamos no Aliados de Lordelo, outras em Paredes, outras em Ribeirão, por vezes em relvados sem grandes condições porque os próprios clubes já tinham lá treinado, outras vezes treinávamos no pavilhão. Muitas dificuldades, portanto...
Umas vezes treinávamos no Aliados de Lordelo, outras em Paredes, outras em Ribeirão, por vezes em relvados sem grandes condições.
A FPF terá algum papel a desempenhar nessa questão?
- A FPF pode, de facto, ter um papel importante. Por exemplo, nos sub-23 não basta dizer que vamos organizar um campeonato. Os clubes teriam que mostrar interesse em participar e demonstrar possuir condições para participar. O que acontece é que a maior parte dos clubes que participam nos sub-23 estão a treinar em sintéticos e a jogar em campos neutros, ninguém joga perto da sua cidade, e não me parece que isso seja bom. A FPF devia procurar saber primeiro se os clubes possuem condições para dar aos seus jogadores e, se não as tiverem, encontrar uma forma de ajudar e financiar a construção das infraestruturas mínimas exigidas. Por outro lado, há a questão das receitas televisivas que podiam ser distribuídas de uma forma mais equitativa e contribuir para melhorar a capacidade dos clubes e, por inerência, a qualidade e competitividade do campeonato português.
O fosso é grande?
- Há uma diferença muito grande entre as receitas dos clubes de top e os de menor dimensão. Acho que o ideal seria dividir por igual metade da receita e os restantes cinquenta por cento consoante a classificação da época anterior. Isso permitiria aos clubes de menor dimensão melhorar as suas receitas e melhorar as infraestruturas ou contratar melhores jogadores. Aliás, ainda esta semana O JOGO trouxe um estudo que referia que nos dez melhores campeonatos da Europa era em Portugal que existia a maior diferença entre os clubes que recebem mais e os que recebem menos.
Queremos ter um futebol forte e até somos campeões europeus, mas quando vamos ver as condições de vários clubes da I Liga verificamos que são precárias.
Aos 17,18 ou 19 anos o jogador português já sai para clubes de todo o mundo.
Por outro lado, sem melhorar as receitas, os clubes portugueses vão continuar a ter dificuldades até para competir com Grécia, Chipre, Bulgária, Ucrânia ou Moldávia na contratação de jogadores portugueses com alguma qualidade. Já tentei contratar alguns que preferiram ir para esses países, que têm uma expressão futebolística inferior a Portugal mas superior em termos de disponibilidade financeira. É uma realidade que nos obriga muitas vezes a recorrer à contratação de estrangeiros, nomeadamente brasileiros, porque embora exista a formação, nessas alturas andamos à procura de um jogador para o imediato. Aliás, aos 17,18 ou 19 anos o jogador português já sai para clubes de todo o mundo.
Quem foi o melhor jogador que treinou?
- Treinei muitos bons jogadores, mas acho que foi o Rafael, em 2000/01. Estava a fazer uma época extraordinária no Paços de Ferreira e podia ter sido o melhor marcador do campeonato. E só não foi por culpa própria, porque quando foi transferido para o FC Porto, a cinco jogos do final, resolveu deixar de jogar. O Wesley, que treinei no Paços de Ferreira e no Leixões, foi outro jogador fantástico. Tive muitos na minha carreira. O maior orgulho que tenho é que talvez tenha sido o treinador que mais jovens lançou na I Liga e dos que mais contribuiu para a obtenção de receitas extraordinárias, e consequente o equilíbrio financeiro dos clubes. Por exemplo, olhando para o Benfica-FC Porto, da meia-final da Taça de Liga, o Vanâ (FC Porto), fui eu que o trouxe para o futebol português; André Almeida (Benfica) estava comigo no Belenenses quando foi transferido para a Luz, depois de ter sido auscultado quanto às suas qualidades.
André Almeida (Benfica) estava comigo no Belenenses quando foi transferido para a Luz, depois de ter sido auscultado quanto às suas qualidades.
Mas há mais exemplos: no Braga está o Ricardo Horta, que subi a sénior no Setúbal, o Paulinho, que foi meu jogador no Gil Vicente, o Sequeira, que subi a sénior no Leixões, e muitos mais noutros clubes, como o Setúbal, onde para além de promover a sénior o Ricardo Horta lancei o Rúben Vezo (Valência), o Frederico Venâncio (V. Guimarães). E em Paços de Ferreira foi um camião deles, desde o Antunes, o Mário Sérgio, o Cadú, o Tiago Valente, Fábio Pacheco, o Coelho, todos da formação. Fui ao Tirsense buscar o Tiba para o Setúbal. Enfim, são tantos que não é fácil recordar de um momento para o outro. Do Paços de Ferreira, comigo a teinador, saíram o Rafael e o Luiz Cláudio para o FC Porto, o Beto para o Benfica, o Glauber, para o Boavista. Por todos os clubes onde passei, todos eles venderam, todos eles realizaram mais-valias.
E no sentido inverso, qual o jogador que lhe causou mais problemas?
- Tive dois ou três, curiosamente dois deles foram também os que melhores qualidade tinham. Estou a falar do Rafael, que quando fazia dois ou três golos chegava à terça-feira e deitava-se na marquesa do posto médico. Doía aqui e ali, para não treinar. Muitas das vezes dizia-lhe: 'vais comigo e após a recuperação, quando chegar à pelada, és tu que vais apitar' e dava-lhe o apito. Ele lá vinha todo contente para o relvado e depois acabava por fazer o treino todo. Mas não era fácil, eu tinha que o fazer sentir-se mimado. O Wesley confidenciava-me tudo, não guardava nada para ele, e quando um treinador sabe tudo o que faz um jogador a situação torna-se difícil de gerir. O Wesley contava-me tudo, mas mesmo tudo o que fazia. Eu sentia-me de certa forma responsável e andava sempre a dizer-lhe para se refrear e cuidar-se. E ele preparava-se, porque nos jogos era um jogador extraordinário e que deixava tudo em campo.
Todos me ligam, e quando vêm a Portugal convidam-me para almoçar ou jantar.
- Outro caso difícil, porque era do género, era o Serginho Baiano, quem em 2002/03 treinei no Paços de Ferreira. Acho que no fundo eles me compreendiam e eu inspirava-os. Eles sentiam em mim um amigo mais velho e que procurava ajudá-los com a minha maior experiência de vida. Sempre tive uma boa relação com os jogadores. No Aves também houve muitos momentos em que fiz de pai, tio, irmão e treinador, fiz de tudo um pouco porque nós temos de saber lidar com eles, de os ajudar para obtermos o retorno em campo. Se conseguirmos sempre tirar mais partido das capacidades de um jogador, eles têm confiança no treinador.
Fiz amizade com todos os jogadores que treinei e há muitos com os quais ainda hoje tenho laços de amizade, no Brasil e em todo o lado. Todos me ligam, e quando vêm a Portugal convidam-me para almoçar ou jantar. Ainda há um mês esteve cá o Wesley e a primeira pessoa a quem ligou, quando estava a sair do aeroporto, foi a mim, a convidar-me para jantar. Não precisamos de nos ver todos os dias, importante é saber que quando chegar aquele momento podemos contar uns com os outros.