De cidade em cidade até tempos prósperos em Baku, a partir de 2001. A história do Qarabag, um clube deslocado em 1992 que procura reencontrar ainda a cidade que foi arrasada pelo conflito em Nagorno-Karabakh. Tempos de esperança
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A história do Qarabag, dez vezes campeão azeri a partir de 2014, é preenchida por este presente próspero e um comando de sonho de Gurban Gurbanov, treinador da equipa há dezasseis temporadas. O sucesso europeu, o Braga que o diga após provar o veneno na Pedreira, tem sido meta traçada internamente por um clube dominante no país, alicerçado pelo patrocínio da Azersun, companhia dedicada à produção de comida, e uma presidência da família Gozal, agora entregue às mãos do filho, Tahir.
O Qarabag tem alimentado e muito o orgulho azeri, mas, sobretudo, estimulado as memórias do que foi o seu passado, do que foi ser um clube deslocado, de morada em morada, até poiso definitivo em Baku, capital do Azerbaijão, distanciada quase 400 quilómetros de Aghdam, berço dos Cavaleiros, e cidade da região de Nagorno-Karabakh, enclave que viveu 30 anos de horror bélico na disputa territorial entre azeris e arménios, sendo que as últimas manobras militares do Azerbaijão, em 2020, acabaram em desfecho vitorioso e definiram a recuperação desse património, tendo sido dissolvida a administração arménia, exatamente a 1 de janeiro deste ano.
O Qarabag tem distribuído cartas na Europa, ousando inebriante brilhantismo e um arrojado tiki-taka, mas sempre com essa cruz, de desfalcado da sua terra, do seu estádio e dos seus históricos seguidores, mesmo que angariando adeptos por todo o país, fruto de resultados desportivos impensáveis, inclusive a presença na Champions League em 2017/18 para a realidade do futebol azeri. O Qarabag de Aghdam, onde se contavam 25.000 habitantes, durou até 1992, entrou em vivência nómada, percorreu diferentes cidades até se alocar em definitivo a Baku em 2001. As suas raízes foram dizimadas em confrontos e ocupações, Aghdam capitulou cinzenta e em ruínas, chamada de Hiroshima do Cáucaso.
A equipa azeri carrega esse peso sentimental, dívida aos seus de uma glória lograda longe da sua identidade caucasiana, mas elementar para transportar e difundir um nome por todo o mundo. Hoje já com a reconfortante certeza de que regressará um dia à sua casa, mesmo que demore longos anos a ser reconstruída, pois um estádio já foi prometido nas políticas de reconstrução de Aghdam.
No banco do Qarabag, como adjunto de Gurbanov, está Musviq Huseynov, que vive o clube desde meados de oitenta, subindo à primeira equipa com 19 anos em 1988/89. Viveu subida à Segunda Liga Soviética em 1989, pouco depois a dissolução do império, a independência do Azerbaijão e com ela os dantescos e sanguinários confrontos pela posse de Nagorno-Karabakh, que redundam na tomada de Aghdam já em 1993.
"Éramos uma equipa ambiciosa, que lutava muito. A esmagadora maioria dos jogadores era da região de Qarabag, 12 ou 13 mesmo nativos de Aghdam. Isso era algo muito importante, que nos unia. Tínhamos um coletivo muito forte e todo esse processo da guerra foi uma extensão do que sentíamos como jogadores. Não queríamos pensar em futebol, queríamos todos alistar-nos no exército e lutar contra o inimigo e defender o nosso território", lembra o antigo avançado, hoje de 54 anos, reportando a mensagem imediatamente recebida das altas patentes.
"Disseram-nos para jogarmos, que a nossa equipa, o Qarabag, tinha de viver. E não podia desaparecer. Era hora de manter a força do nome Qarabag, elevar o clube num momento muito difícil. Jogávamos e treinávamos em condições muito complexas, só sabe quem viveu aquilo, pois caiam bombas à volta do estádio. Nós seguíamos, era angustiante, mas o povo esteve sempre connosco", sustenta Huseynov, abrindo-nos a janela quanto à saída inevitável de Aghdam. "Nós representávamos toda a região, sentíamos o amor dos nossos adeptos. Mesmo com muita miséria e condições complicadas, acentuadas no fim da União Soviética, não faltava apoio, não nos deixavam sós, mesmo quando já rebentavam bombas. Em cada treino tínhamos 500 ou 1000 adeptos. Era um carinho incondicional", transmite, viajando às profundezas do tempo e à aflição da alma.
"Quando a guerra estala de vez, nós, os jogadores, éramos muito novos. Não entendíamos bem a vida, o que estava a acontecer, era tudo estranho. Só entendíamos uma coisa, que o clube tinha de sobreviver, mesmo no meio do contexto. Foram momentos difíceis e dramáticos, a nossa união era brutal e só mesmo quando o estádio foi destruído é que sentimos obrigação de abandonar o nosso território. Fomos para Mingachevir, onde não tínhamos nada, ninguém recebia salários. O presidente Adil Nadirov, ajudou-nos muito, lutou para que o Qarabag não morresse. Muito gostaria ele de ver o sucesso de hoje, como o clube representa o Azerbaijão na Europa", desvenda, recuando a rastos de incerteza.
"Depois fomos para outra cidade, Ali-Byaramli, onde ficamos alguns meses, seguiu-se Sumgait, foram cinco anos, até que em 2001, a sede passou para Baku. Foram anos difíceis, só em 2001 com o patrocínio de Azersun a equipa conseguiu crescer, vivendo um grande momento, dominante no futebol azeri", enfatiza.